terça-feira, 28 de dezembro de 2010


A boca seca e os velhos olhos vermelhos voltaram de vez?
Não, porque sempre estiveram aí. São mais antigos que a ressaca de Capitu e a discussão já solucionada por Clarice Lispector sobre quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha.
As drogas quase sempre fizeram parte da história do homem. A origem da maconha data de 2723 a.C., segundo registros da Farmacopéia Chinesa, tendo chegado na Europa por volta do século XVIII, assim como no Brasil, de acordo com documentos referentes à época das Capitanias Hereditárias.Da mesma forma, as drogas também fizeram parte da vida e obra de artistas importantes e por vezes fundamentais na história da arte.

Difícil imaginar o comedor de batatas Vincent van Gogh sem seu absinto amarelo. Difícil imaginar o infernal Rimbaud sem a fada verde. Os ácidos André Breton, Miró e Salvador Dalí sem a persistente memória do haxixe. E o que seria do sangue de poeta de Jean Cocteau sem o diabólico menino ópio? O uivo da Geração Beat colocaria o pé na estrada sem o almoço nu de LSD? Jimi Hendrix e Jim Morrison abririam as portas da percepção de William Blake? Janis Joplin se tornaria uma heroína? Charles Baudelaire sentiria o perfume das flores do mal? Hunter Thompson conheceria o Dr. Gonzo sem piteiras e mescalinas? Truman Capote sem seu bonequinho de luxo uísque teria música para camaleões? Nelson Rodrigues escreveria sobre a vida como ela é sem tabaco? Os hippies superariam a repressão sexual descrita por Freud sem seus alucinógenos? E os jovens brasileiros em tempos de AI5? Se expressariam?

Jamais saberemos. O que sabemos é que se fez arte através de ou também pelo uso dessas substâncias. Sabemos que o reggae sem a erva natural e Bob Marley encontrou seu Ponto de Equilíbrio em Natiruts e Manitu (um mundo que só quer te ver sorrir). E que Lucy continua no céu com seus diamantes e John Lennon.
Saindo do campo das artes, e retornando ao pai da psicanálise, haveria divã sem cocaína? E os sonhos? Alguém os interpretaria? E da revista Veja sem a luta pela vida de Fábio Assunção, o que seria? A polícia do Rio de Janeiro (para pegar o maior expoente do movimento) sem o tráfico de drogas, pra onde iria?
A questão é complexa, e é por isso que uma visão simplista e ingênua como a que por aí circula nas bocas molhadas de alguns cidadãos brasileiros deve ser rebatida, e mesmo que eles não queiram, debatida.

É incrível como que sob a voga da grife Tropa de Elite as pessoas aderem à visão de uma polícia que é instruída a pensar que o consumidor final da droga é o grande financiador do crime.
É tão simples dizer que aniquilados os consumidores acaba-se o tráfico como pensar que sem carros nas ruas não haveria mais poluição nem acidentes de trânsito. Os fatores são múltiplos e fazem parte de uma rede que envolve tantos outros elementos.
Mas o pior desse tipo de pensamento é o fascismo que apóia o saco plástico e vê graça no cabo de vassoura, é uma sociedade cronicamente inviável e conservadora que grita: “joga bomba na favela!”, e se estende : “nos playboys também!”
Pois bem, a exemplo dos heróis da Marvel, Capitão Nascimento, El Justiciero (tcha tcha tcha, diriam os Mutantes) das telonas vem ao mundo para cumprir sina messiânica e fazer nascer de novo os “cidadão meliante”. Ele é um homem que honra seu sobrenome e torna-se El gran ídolo da garotada, fazendo discípulos violentos e intolerantes. Pessoas que clamam por paz debaixo do céu e da terra.

É acreditando nessa didática da colher de pau, mais sofisticadamente, justiça com as próprias mãos, que perpetua-se uma guerra cadavérica centrada numa moeda única de dois lados, o de quem reprime e o de quem vende a droga. Como Romeu e Julieta, um não vive sem o outro, e assassinam-se diariamente sem perceber tratar-se de uma ação mútua.
Exatamente por essa questão, que a discussão acerca de todas as drogas, mas centrada principalmente na maconha, deixou de ser sobre os efeitos que acomete o indivíduo que a consome e passou a ser sobre o efeito que consome a sociedade que a comete, já que é crime.
Para alguns o Brasil ainda é o país do Ame-o ou deixe-o. Assim sendo, sob essa visão criminosa que o problema ganhou, os legalistas de plantão repreendem o uso da maconha com a Constituição Federal nas mãos, agindo de maneira tão veemente como quando dirigem seus carros logo após saborearem aquele delicioso bombom de licor holandês.

O problema maior é o glamour e a conveniência. Pois pecados menos originais como adquirir ingresso na mão de cambista, usar falsa carteira de estudante e comprar filmes e CDs piratas não são vistos da mesma maneira pelos mesmos olhos não vermelhos. Trata-se de um ambiente muito pop para a marginalizada maconha. A ilegalidade garantiu-lhe status de subversiva, atrelando seu uso à violência, ao contrário do que acontece com os brega-chiques cigarro e cerveja. Júlio Bressane, Cleópatra e Nietzsche não entram em Hollywood, a não ser sob vaias ou então chorando.
Pois Veja só você que a edição da revista que traz um anti-comunista Barack Obama na capa, informa que a proposta do falecido Nobel de Economia Milton Friedman, defendida na década de 70, volta a ganhar força na ONU perante o inquestionável fracasso do “mundo livre de drogas” proposto em 1998, a legalização.
A proibição em algumas cidades da Marcha da Maconha não impediu que Fernando Henrique Cardoso, e César Gaviria, ex-presidente da Colômbia, fossem taxativos ao afirmar que as políticas de combate ao tráfico de drogas na América Latina não funcionaram.

Outra alegação em favor da descriminalização da maconha proposta pela comissão encabeçada pelos dois e composta por outros ex-presidentes da região, é a de que o usuário de maconha deve ser tratado como doente, não como criminoso, pois trata-se de uma questão pertencente à esfera da saúde pública e que migrou para a violência urbana. Mas não é só isso, eles admitem os danos que podem ser causados pelo uso, e inferem que é necessário concomitantemente com a descriminalização, um conjunto de políticas de prevenção, como o atendimento assistencial com o intuito de reduzir os riscos de overdose, AIDS e outras doenças.
No cinema, quando se decide a classificação etária de um filme divide-se os critérios para encaixá-lo naquela categoria, como sexo, drogas e violência. Drogas e violência possuem uma categoria individual cada. No Brasil a proibição as coloca como farinha do mesmo saco.
Seguindo o raciocino de FHC na revista Veja, dessa maneira os governos poderiam taxar e regulamentar o comércio, tirando-o das mãos dos traficantes e diminuído a violência associada à disputa por mercados consumidores. Com esse dinheiro, financiariam programas de tratamento de dependentes e educariam seus cidadãos sobre os malefícios dos entorpecentes.

Outro dado importante a favor da tese é a observação do que foi feito em países que adotaram ou não essa política. Na Holanda, apenas 5% dos habitantes fazem uso da substância, menos da metade verificada na Suíça, Itália e Espanha. Nos Estados Unidos, a forte repressão policial não impede que o país continue em primeiro no ranking de maior consumidor mundial de drogas.
Com essa posição, Fernando Henrique Cardoso e sua comissão se juntam a outros nomes que há mais tempo proclamam o mesmo mantra, casos de Fernando Gabeira, José Padilha, Fernando Meirelles, Ney Matogrosso, Soninha Francine, Marcelo D2 e Roberto Frejat, que defende que “em toda a história o homem sempre fez uso de substâncias que lhe permitiriam alcançar novos estados de consciência. A proibição não põe fim a isso e é preciso discutir o assunto.”

De fato, ele tem razão. Em toda a história e até hoje. Mesmo os tidos como campeões de saúde, os esportistas, têm dado uma derrapada na pista ao som de Reggae e mister Freud. Que o diga o olímpico Michael Phelps e o beatificado Maradona.
O idealismo ainda é a maneira mais burra de se pensar, portanto não se trata disto, e sim de uma análise crítica dos fatos, da história e de seus resultados, que têm sido colocados na conta da Praça do Papa. Não é uma visão determinista e tragicômica como a da série do Fantástico.
É provável que ainda assim se ouça os gritos dos que te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro, pois assim se ganha mais dinheiro, mas é difícil crer que continuaremos fechando olhos e caixões enquanto o rap nos ensina a viver.

Texto originalmente publicado no portal “O Outro”, da PUC Minas.

Raphael Vidigal

terça-feira, 7 de dezembro de 2010


Já está nas lojas o CD e DVD Tributo a Cazuza - ao vivo na praia de Copacabana, com preço que varia entre R$27, 90 e R$29, 99.
O lançamento é o registro do show realizado ano passado, onde Cazuza ressuscita aos 50 bem vividos anos.
Vários tributos têm pontuado a carreira do cantor, e um dos diferenciais deste é justamente o fato de ter sido realizado na praia, dos locais preferidos e mais freqüentados por Cazuza.
Infelizmente nomes de peso e que fizeram parte ativamente da vida pessoal e criativa do poeta ficaram de fora, cedendo o lugar para Preta Gil, Rodrigo Santos, Gabriel Thomaz e Liah.



Bebel Gilberto, Marina Lima, Simone e Adriana Calcanhotto com certeza dariam maior credibilidade a um espetáculo que se propôs a homenageá-lo
O agora VJ da MTV, Lobão, também não estava lá, ele que só para começar foi amigo íntimo e parceiro em composições como Mal Nenhum, Azul e Amarelo, entre outras, além de ser o criador (juntamente com Bernardo Vilhena) de Vida Louca Vida, imortalizada na voz de Cazuza.
Outro esquecido foi Léo Jaime (que atualmente embala Maior Abandonado na novela das 7), responsável por apresentar Cazuza ao Barão Vermelho no início da carreira.
Já Frejat não pôde comparecer por motivo de agenda e teve sua ausência sentida.



Falando dos presentes, Ângela Rô Rô, para quem foi composta Malandragem, sucesso na voz de Cássia Eller, e parceira de Cazuza em Cobaias de Deus, participou pela primeira vez de um tributo ao amigo, e como de costume demonstrou toda sua visceralidade e energia em cima do palco, transmitidas através de sua voz rouca e sua performance debochada, traços marcantes de sua personalidade.
Ney Matogrosso, Caetano Veloso e Sandra de Sá fizeram o que deles já se esperava e formam, juntamente com Rô Rô, o ponto alto do DVD.
Arnaldo Brandão foi quem mais ousou, ao interpretar a lado C, Jovem, rock adolescente de Cazuza gravado por Arnaldo na época do Hanói-Hanói.
Os pecados do DVD estão em contar com convidados pouco conhecidos do poeta, demonstrando falta de critério, e em deixar de fora de sua seleção final Minha Flor, Meu Bebê, interpretada lindamente por Caetano Veloso na ocasião da festa.



O ponto positivo, além dos nomes já citados, é o Making Off que traz os artistas dando depoimentos a respeito do exagerado, Arnaldo Brandão sentencia: “ele era muito preciso quando queria ser cruel”.
Aos 50 anos, nem tão cruel nem tão preciso, um misto entre Ângela Rô Rô e Preta Gil, Ney Matogrosso e Liah.

Segue abaixo a lista de músicas do CD e DVD.

DVD:

1. Por que a gente é assim? - Ney Matogrosso
2. Pro dia nascer feliz - Ney Matogrosso
3. Vem comigo - Zélia Duncan
4. O tempo não pára - Zélia Duncan/part esp.; Arnaldo Brandão
5. Maior abandonado - Caetano Veloso
6. Ideologia - Paulo Ricardo
7. Ponto fraco - Paulo Ricardo
8. Brasil - Gabriel O Pensador/part. esp.; George Israel
9. Preciso dizer que te amo - Sandra de Sá
10. Blues da piedade - Sandra de Sá
11. Vida louca vida - Leoni
12. Mal nenhum - Leoni
13. O nosso amor a gente inventa - Preta Gil
14. Todo o amor que houver nessa vida - Angela Ro Ro
15. Malandragem - Angela Ro Ro
16. Solidão que nada - George Israel
17. Codinome Beija-flor - Rodrigo Santos
18. Jovem - Arnaldo Brandão
19. Beth Balanço - Gabriel Thomaz/Liah/Rodrigo Santos
20. Exagerado - Paulo Ricardo/Preta Gil /Leoni

CD:

1. Por Que a Gente é Assim? - Ney Matogrosso
2. Pro Dia Nascer Feliz - Ney Matogrosso
3. Vem Comigo - Zélia Duncan
4. O Tempo Não Pára - Zélia Duncan
5. Maior Abandonado - Caetano Veloso
6. Ideologia - Paulo Ricardo
7. Brasil - Gabriel o Pensador
8. Preciso Dizer Que Te Amo - Sandra de Sá
9. Vida Louca Vida - Leoni
10. O Nosso Amor a Gente Inventa - Preta Gil
11. Malandragem - Angela Ro Ro
12. Codinome Beija-Flor - Rodrigo Santos
13. Beth Balanço - Gabriel Thomaz/Liah/Rodrigo Santos
14. Exagerado - Paulo Ricardo/Preta Gil/Leoni



Raphael Vidigal

Texto escrito em 2009.

terça-feira, 19 de outubro de 2010


O mundo de Almodóvar sempre esteve impregnado de cores, deboche e dramalhões mexicanos. Pelo menos o mundo cinematográfico, contrário à infância pobre que o diretor teve. Embora afirme que suas obras são sempre parte de sua vida, Almodóvar tem por mérito exagerar nos tons, e fazer disso seu grande diferencial. A arte maior de Almodóvar é exagerar com sutileza. E esse lhe é um talento inquestionável. Ao tratar de personagens complexos e quase sempre opostos, entrando em conflitos psicológicos e até mesmo físicos, Almodóvar tem por hábito utilizar cenários abundantes, que nos comovem através da associação de símbolos. Sim, tão comoventes quanto os personagens criados por Almodóvar são os cenários que ele utiliza, regados a seu tradicional vermelho sangue que também pode ser utilizado nos cabelos, nas roupas e no batom da personagem que dá nome à sua película de 1993, Kika.
Já na primeira cena do filme Almodóvar nos oferece uma cama onde deita-se uma modelo simulando um orgasmo. E na verdade, todos estão em pé: a modelo, a cama e o fotógrafo que a pede para relaxar enquanto a retrata para uma propaganda de lingerie. Tudo é falso, tudo é fantasia, e diferentemente do comercial que vai ao ar, no filme o espectador sabe que está sendo enganado.



O fotógrafo em questão será personagem importante no filme, pois servirá de base para dar vazão a uma gama de comportamentos: ele simboliza o voyeur solitário e introspectivo, apaixonado pela mãe e desejando a morte do padrasto. Além disso, é submisso à mulher, aceitando a traição com complacência. Nada mal para um Édipo dos dias atuais de Almodóvar.
Desde o início do filme, o renomado diretor espanhol confunde o espectador quanto ao olhar que assiste à cena. Nunca se tem certeza se é simplesmente o olhar de Almodóvar, do espectador ou dos voyeurs que cercam os acontecimentos, pois eles estão em toda parte, e o fotógrafo Ramón, interpretado por Álex Casanovas, não é o único do filme, Andrea Caracortada também tem o costume de espionar as pessoas, só que de um jeito um pouco menos discreto, um tanto quanto espalhafatoso, a julgar por seu modelito andrógino com desenhos de seios aparecendo. Sem se esquecer da câmera que ela carrega na cabeça. Se Ramón tem por hábito fotografar cenas de sexo, a predileção de Andrea é por crimes sanguinolentos. Ela representa a tão falada sociedade do espetáculo, apresentando um programa de viés sensacionalista que tem como patrocinador uma marca de leite. A personagem é interpreta pela atriz espanhola Victoria Abril, e suas axilas não depiladas aliadas ao corte que ela empunha com orgulho na cara dão a medida exata do charme da apresentadora e psicóloga aposentada.



Aliás, outra característica não menos presente nos filmes de Almodóvar é o deboche com que ele trata as ocupações humanas. Se a desvairada Andrea Caracortada é uma ex-psicóloga, o retrato dos policias não deixa de ser menos cômico. Quando eles recebem por telefone a notícia de que Kika está sendo estuprada, segue-se um diálogo memorável, em que um dos policias compara seu queixo ao de Kirk Douglas. Não menos interessante é o visual a la Wolverine de seu comparsa. Os dois agem segundo o estereótipo dos policiais bonachões que se garantem em sua autoridade, e não dão a mínima para a denúncia feita. Quando eles resolvem agir, entediados com o ambiente da delegacia e dispostos a darem um passeio, é que tem início uma das melhores cenas do filme.
Tudo começa no entanto, um pouco antes, quando a empregada lésbica da casa de Kika, Juana, interpretada por Rossy de Palma, musa de Almodóvar que já a comparou às pinturas de Picasso (e à qual refere-se à beleza em cena que Kika lhe diz: “em tempos de rostos estranhos como os de agora bem que poderia ser modelo”), abre a porta da residência para seu irmão, o ator pornô e foragido da justiça Paul Bazzo, interpretado por Santiago Lajusticia, e ele resolve não estuprar Kika. Ao contrário do que é levado a pensar o espectador quando a câmera o filma de baixo para cima por trás e vai subindo lentamente até parar em suas calças, enquanto se exibe de frente para uma Kika adormecida, ele não está mostrando-lhe o membro sexual, mas sim os músculos do tórax e braços, e isso só fica evidente quando a câmera sobe mais um pouco e o filma por inteiro, ainda de costas.



Nesse momento, ele aparentemente desiste de estuprar Kika e se retira do quarto, mas ao tentar inutilmente acordar sua irmã que o pediu que ele desse-lhe um soco na cara para não descobrirem que ela o deixou entrar e eles eram irmãos, ele acaba demovendo-se da aparente transformação e volta ao quarto para estuprar Kika. Excitando-a com um pedaço de mexerica, Paul rapidamente começa a estuprá-la ainda dormindo. Nesse instante, a câmera traz uma imagem que pode ser da janela, de algum observador não presente na cena e a certa distância. Podemos ser nós, os espectadores, ou o voyeur que insistentemente bisbilhota todas as cenas. Ou ainda, talvez sejam todos a mesma coisa.
Ao mesmo tempo em que nos mostra Paul estuprando Kika em cortes fechados, onde somente os dois são enquadrados e o diálogo entre eles é o essencial da cena, Almodóvar também nos dá a oportunidade de enxergar o ato em cenas abertas, focalizando por exemplo o altar construído por Ramón em cima da cama, com imagens de santas e mulheres nuas, em um mosaico que ilumina o interior do personagem.
Isso nos dá uma prova de que a grande conquista de Almodóvar não é realizar uma cena de estupro, mas sim tratá-la de acordo com suas características cinematográficas e sua sensibilidade. O descaso com que a personagem Kika encara seu algoz depois de vários minutos em que está sendo estuprada tem um quê de ironia, ousadia e cinismo do irriquieto diretor. Cada personagem da trama carrega consigo características diversas, que a exemplo do que o próprio Almodóvar nos diz, podem ser atribuídas à sua própria personalidade, pois se o cinema é parte da sua vida, temos um filme vivo, com contornos de dramalhão mexicano.



Em uma tomada que deveria ser dramática, trágica, violenta, Almodóvar nos brinda com seu bom humor para lidar com o lado mais sórdido e tosco do ser humano. O estuprador é tosco, Kika tem seus momentos em que é tosca, e a abordagem dos policias é tão tosca quanto rude e inesperada. E por isso mesmo, hilariante. Sem se importar com as pessoas que possam estar dentro da casa eles chegam atirando na porta, arrombam-na e então caminham pela residência com as armas em punho. Outro olhar bastante presente no filme é o do reflexo do espelho. Almodóvar o utiliza diversas vezes para dar luz às cenas, dando-nos indícios de que talvez estejamos vendo tudo pelo lado oposto, ao contrário.
Na cena que antecede a entrada dos policias na casa, Kika e Juana dialogam tranquilamente enquanto Paul estupra a protagonista. A câmera nos mostra o rosto completo de Kika, enquanto que o de Juana não é totalmente filmado. Enquanto Kika tem uma expressão de ansiedade, não sabemos com que cara Juana dialoga com a patroa, sabendo que tudo aquilo só acontece por culpa de uma atitude tomada por ela. A vergonha pode ser o motivo. E essa é a única dica que temos do sentimento da personagem, pois sua voz continua pausada e serena.



Como são todos voyeurs, ou seja, estão todos observando, os cortes de Almodóvar são sempre para mostrar outros olhares. Quando os policias caminham em direção ao quarto de Kika, quem os observa ao fundo é Juana, quando eles entram no quarto alguém os observa de longe, ou atrás da janela ou da tela do cinema, e quando Paul é finalmente tirado de cima da estuprada, o olhar que nos é oferecido é o de Andrea Caracortada, mesmo que seja ela a enquadrada na cena, o essencial não é a sua imagem, mas o seu olhar, para onde ela olha.
Apesar de ser uma cena de relativo suspense sobre o que os policias irão encontrar quando entrarem no quarto tudo acontece de maneira muito rápida, no mesmo ritmo frenético com que Paul tenta ejacular, entrecortando alguns momentos de relativa pausa, onde Kika faz observações à respeito de higiene pessoal e o tal voyeur da janela observa a cena de aceleração, mas estática. Todos os elementos que compõe a cena nos são oferecidos com cores, velocidade, e a atuação dos personagens é simplesmente patética, com destaque para o momento em que os policiais puxam o estuprador pelas calças arriadas até que ele literalmente se desgrude de seu objeto de prazer.



Outro elemento utilizado para cortar as cenas são objetos que descem pelas janelas do prédio segurados por cordas, e embaçam um pouco o visual das cenas, nos deixando ver somente parte do que está acontecendo, pois há sempre algo que nos esconde a realidade completa.
O ápice de toda essa cena acontece quando Paul Bazzo foge até a janela e se masturba até que finalmente ejacule, e a gota de seu momento de prazer cai justamente no rosto partido da repórter Andrea Caracortada, em um dos raros momentos em que ela parece mais humana e sorri como uma criança. No amor verdadeiro sêmen é lagrima.



Raphael Vidigal

segunda-feira, 27 de setembro de 2010


Ismael Silva é considerado por Chico Buarque seu “verdadeiro pai musical”. O sambista nascido em Niterói, no Rio de Janeiro, no dia 14 de setembro de 1905, foi um dos fundadores da primeira escola de samba, no final da década de 20, a qual deu o nome de Deixa Falar. Tido por Vinicius de Moraes como um dos três maiores sambistas de todos os tempos, Ismael tem em seu currículo o nome de músicos famosos como parceiros, destacando-se entre todos eles Noel Rosa e Lamartine Babo. Descoberto por Francisco Alves em 1927, o inventor do samba carioca como se conhece hoje é o autor de várias canções célebres do nosso cancioneiro, entre elas “Se você jurar”, em parceria com Nilton Bastos, “Adeus”, parceria com Noel Rosa e “Antonico”, um de seus últimos sucessos. Depois de ser regravado por artistas como Beth Carvalho, Clara Nunes e Cristina Buarque nos últimos anos de sua vida, Ismael Silva morreu no dia 14 de março de 1978, aos 72 anos, e para sempre será lembrado como um dos grandes nomes da música brasileira. Se estivesse vivo, ele completaria 105 anos nesse mês de setembro.

Antonico

Composto em 1950 por Ismael Silva, o samba “Antonico” foi registrado por ele próprio em disco em 1973, fruto do espetáculo “Se você jurar”, dirigido por Ricardo Cravo Albin. Em 1967, Elza Soares já o havia gravado no disco “Elza, Miltinho e Samba”, em que cantava algumas músicas ao lado do cantor Miltinho. Apesar das constantes negativas de Ismael, especula-se que a música seja autobiográfica, devido às dificuldades financeiras que o compositor passou após sair da prisão. Em uma carta escrita por Pixinguinha em 1939, endereçada ao musicólogo Mozart de Araújo, ele dizia: “Espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim.” Quase os mesmos versos presentes no samba “Antonico”.



Se você jurar

O samba “Se você jurar”, composto em 1931, tornou-se uma das músicas mais conhecidas do repertório de Ismael Silva. Grande sucesso no carnaval daquele ano, cantada pela dupla Mário Reis e Francisco Alves, “Se você jurar” recebeu diversas regravações, entre elas as de Beth Carvalho, João Bosco e Casuarina. Além disso, alimentou-se por muito tempo uma polêmica sobre a autoria da canção. Orestes Barbosa e Mário Reis afirmavam que ela era apenas de Nilton Bastos, Francisco Alves dizia que era dele e de Nilton, e Ismael Silva garantia que a compusera ao lado de Nilton.

Raphael Vidigal

Lido na Rádio Itatiaia dia 26/09/2010.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010


Na primeira quarta-feira do mês de agosto desse ano, a cantora Leny Eversong, dona de uma das mais potentes vozes que o Brasil já teve, teria completado 90 anos de idade.
Leny, que nasceu Hilda Campos Soares da Silva, começou a carreira aos 12 anos, cantando no programa “A Hora Infantil”, na Rádio Clube de Santos, cidade onde nasceu. Demonstrando desde o início seu enorme talento para interpretar foxes estrangeiros, Leny logo passou a ser chamada de Hildinha, a Princesa do Fox. Pouco tempo depois, ela deixaria para trás o nome em português, mas não abandonaria as canções estrangeiras, passando a se especializar também em outros ritmos, como jazz, bolero e blues. Ela, que não falava nada em inglês, anotava na mão a pronúncia das palavras e era proibida por seu empresário de dar entrevistas fora do Brasil, arriscando no máximo alguns “all right´s” e “ok´s”.



A partir da metade da década de 50, Leny passou a receber convites frequentes para se apresentar anualmente em Las Vegas e fazer shows pela Europa, já que a essa altura também cantava (e muito bem) em outras línguas, como italiano, espanhol e francês, e tudo isso sem saber falar o idioma.
Apesar da enorme fama da qual já desfrutava no exterior, Leny nunca obteve no Brasil o reconhecimento que lhe era devido, e gravou poucas vezes em português, numa dessas tendo feito registros históricos de músicas que seriam sucesso mais tarde na voz de Elis Regina, a exemplo de “Aleluia”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, e “Arrastão”, a música que lançou Elis no Festival da Canção, também de Edu Lobo e Vinicius de Moraes.



No início da década de 70, quando seu marido desapareceu supostamente seqüestrado por traficantes que o confundiram com seu filho (mais tarde ele seria preso acusado de envolvimento com drogas), Leny não quis saber mais de música e se refugiou por um tempo na casa do amigo e cantor Agnaldo Rayol. Conhecida por sua figura gorda e loura e sua voz que alcançava tons extremos, Leny ficou deprimida, teve diabetes e raramente apareceu em alguns programas televisivos. Nunca mais gravou um disco. Aquela figura alegre, expansiva, que falava alto e comia muito já não existia mais.
No dia 29 de abril de 1984, pouco tempo depois de ter as duas pernas amputadas, Leny morreu aos 63 anos, e sua voz desapareceu definitivamente.
Entre seus maiores sucessos estão Jezebel, gravada por ela em 1956 e Summertime e St Louis Blues, sucessos em inglês gravados em 1957. Além disso, foi responsável por lançar o cantor Juca Chaves, ao gravar uma música sua quando ele tinha então 16 anos, e ajudou Cauby Peixoto no início da carreira.
Hoje em dia, ainda é possível encontrar seus discos sendo vendidos pela internet por preços que variam entre R$80 e R$150, e em 2007, o jornalista e produtor musical Rodrigo Faour, lançou uma coletânea de Leny Eversong através da série Grandes Vozes, editada pela Som Livre.
Leny Eversong tornou-se artigo de colecionador, raridade, mas sua voz poderosa, afinada e límpida é a prova maior do valor de uma cantora de inquestionável qualidade.



(Matéria publicada no jornal "Hoje em Dia")

Raphael Vidigal

domingo, 12 de setembro de 2010

A história de como Hélio Costa tornou-se o candidato do PT em Minas



A quatro meses das convenções partidárias, o PT vive em Minas Gerais situação parecida com a que seu rival histórico, o PSDB, vive no plano nacional. E o problema começou justamente quando integrantes do partido resolveram deixar a rivalidade de lado e uniram-se ao PSDB para levantar a bandeira branca de Márcio Lacerda, mais ou menos como se Cruzeiro e Atlético se unissem para torcer juntos pelo América.
Agora, a estrela vermelha está mais rachada do que nunca em Minas, e a briga é para ver quem consegue juntar mais pedaços, pois se uma estrela tem cinco pontas e a disputa está dividida em dois dentro do partido, a matemática prova que alguém há de sair ganhando.



Patrus Ananias, ex-prefeito de Belo Horizonte e atual Ministro de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, conta com o apoio dos petistas mais fiéis, aqueles que não se uniram ao PSDB nas últimas eleições, e do PC do B, que teve sua candidata Jô Moraes apoiada por ele, enquanto Fernando Pimentel, que também já foi prefeito da cidade, tenta unir à sua candidatura a nova safra, os mais flexíveis, aqueles que aceitam trocar beijos com os tucanos em prol de uma governabilidade mais ampla.
Esse imbróglio dentro do partido do presidente Lula faz com que Antônio Anastasia, o candidato da continuidade, do governador Aécio, enfim, do PSDB, saia na frente da disputa por já estar há mais tempo nas ruas fazendo campanha, da mesma forma com que Dilma cresce devido à indefinição entre Serra e Aécio no plano nacional.
No entanto, o problema maior do PT não é seu inimigo, nem ele próprio, é justamente seu melhor amigo, aquele em quem ele confia, a quem confessa seus pecados. O PMDB, principal aliado da base governista, exige que o candidato ao governo do Estado seja Hélio Costa, Ministro de Comunicações e ex-senador por Minas, e que sua candidatura seja apoiada também pelo Partido dos Trabalhadores, que não deveria lançar nenhum outro candidato além de Hélio.



Confusão armada, pois o PT, com dois interessados na disputa e com boas possibilidades de vencerem as eleições (Patrus e Pimentel já foram prefeitos de Belo Horizonte), já acha complicado convencer um dos dois a desistir, como foi complicado para o PSDB convencer Aécio, ainda mais os dois.
Para completar, o vice-presidente da República, José Alencar, integrante do nanico partido PRB, também tem seu nome aventado como um dos possíveis candidatos caso restabeleça sua saúde, o que poderia unir PT, PMDB e PC do B num só pacote, mas nada garantido, pois há quem diga que diferentemente de Pimentel e Patrus, Hélio Costa não desiste.
E aí fica complicado para o presidente Lula não apoiar seu vice, não apoiar seu Ministro ou mesmo os integrantes do seu partido, que embora bem menor que o Lulismo, ainda existe, e se chama PT, mais do que nunca perdido, precisando se decidir em um dilema parecido com o da Escolha de Sofia, e nesse clima cinematográfico só há uma certeza: Alguém tem que ceder...resta saber quem. Daqui a pouco “O Cara” pede a seu amigo Obama que convoque Diane Keaton e Jack Nicholson para lhe ajudar. Não vai ser fácil costurar essa estrela.



Raphael Vidigal

quarta-feira, 11 de agosto de 2010


Também completaria 100 anos em 2010, o compositor, regente e instrumentista, Osvaldo Gogliano, conhecido no meio musical como Vadico. Filho de imigrantes italianos, Vadico nasceu em São Paulo no dia 24 de junho de 1910 e faleceu no Rio de Janeiro no dia 11 de junho de 1962, aos 51 anos, após sentir-se mal e sofrer um ataque cardíaco durante uma gravação. No ano de 1930, seu samba “Arranjei outra”, em parceira com Dan Mallio Carneiro, foi gravado na Odeon por Francisco Alves. Em 1932, o compositor, pianista e regente, Eduardo Souto, o apresentou a Noel Rosa, com quem formaria uma histórica parceria, que inclui, entre outras, músicas como “Feitio de Oração”, “Provei”, “Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila” e “Pra quê mentir?”. Ao todo, foram 10 músicas em parceria com Noel. Nessas composições, Vadico fazia as melodias para que depois Noel Rosa colocasse as letras. Após a morte de Noel em 1937, Vadico embarcou para os Estados Unidos com a Orquestra Romeu Silva para tocar no Pavilhão Brasileiro da Feira Mundial de Nova York, quando também se exibiram Carmen Miranda e o Bando da Lua. Nessa ocasião, Vadico conheceu Carmen e passou a atuar como pianista dela. Já em 1943, a convite do próprio Walt Disney, o compositor musicou o desenho "Saludos, amigos", onde o personagem Zé Carioca aparecia como símbolo do Brasil. Na década de 50, Vadico voltou ao Brasil e passou a trabalhar como pianista e orquestrador para a gravadora Continental e para a Rádio Mayrink Veiga. Nesse período, tocou com o cantor Jamelão e teve seu samba-prelúdio "Prece", considerado pela crítica como uma de suas músicas mais inspiradas, gravado por Helena de Lima e pelo Trio Nagô. Além disso, compôs com Vinícius de Moraes a música "Sempre a esperar", gravada no LP "Elizeth interpreta Vinicius", da cantora Elizeth Cardoso, lançado pela Copacabana em 1963. Por essas e outras é possível perceber que Vadico foi muito mais do que somente o parceiro musical de Noel Rosa.

Raphael Vidigal

Foto: Vadico e Tom Jobim em Copacabana, Rio de Janeiro.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010


Adoniran Barbosa, nome artístico de João Rubinato, nasceu na verdade no dia 6 de agosto de 1912 na cidade de Valinhos, interior de São Paulo, mas tem o seu centenário comemorado em 2010 porque teve o seu registro alterado para o ano de 1910, para que conseguisse trabalhar. Adoniran era um artista no sentido vivo da palavra. Filho de imigrantes italianos, seu primeiro sucesso no rádio foi como ator, no programa criado por seu amigo e parceiro Osvaldo Moles, onde interpretava o personagem “Charutinho”, que já se caracterizava pelo sotaque paulista caipira bem italianado. Esse personagem típico da paisagem urbana da cidade de São Paulo seria a grande inspiração para que Adoniran criasse sambas como “Saudosa Maloca”, “Trem das Onze”, “Tiro ao Álvaro”, etc. Nesses sambas, Adoniran utilizava todo o seu talento de cronista da fala, exaltando a poesia escondida, mas sempre presente, do povo da cidade. Não bastasse isso, Adoniran ainda foi parceiro musical de Vinicius de Moraes por correspondência. Vinicius enviou os versos de “Bom dia tristeza”, sucesso na voz de Maysa, para Aracy de Almeida, dizendo a ela para fazer o que quisesse com aquela letra. Ela então levou os versos até o seu amigo Adoniran Barbosa, e esse colocou a melodia numa das mais belas e melancólicas canções brasileiras de todos os tempos, provando seu talento como compositor nos mais diversos gêneros. Aos 72 anos, Adoniran partiu em seu trem das onze ao encontro de Iracema no dia 23 de novembro de 1982, mas sua fala rouca, seu humor mordaz e sua incrível capacidade de dizer coisas bonitas com simplicidade ficaram para sempre no imaginário do povo brasileiro.

Raphael Vidigal

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Há 20 anos partia Cazuza, e há 26 Júlio Barroso. No mesmo dia do amigo, ontem foi a vez de Ezequiel Neves.



Perdido na selva desde que chegara a este planeta e sonhando com Jack Kerouac, o traficante da liberdade Júlio Barroso despencara de sua janela de beira para o céu até o azul infinito. Era um frio seis de julho de 1984. Nesse dia, o mundo inteiro era um trio de Absurdettes que choravam sua viagem.
Mas não esse mundo com o qual se está acostumado. Era um mundo beat, um mundo anárquico, um mundo onde se trafica poesia. Um ano antes, esse ser colorido que só usava branco e que enxergava além do universo com seus óculos fundo de garrafa perdida no mar com o pergaminho da dúvida fizera um movimento interessante através de uma tal de Gang 90.
Era o movimento da dança. Embora parecesse óbvio, em suas pernas era diferente. Uma esquisitice embriagante, meio Noite e Dia, meio Telefone. Dançando no limiar da dor entre a entrega e o sobressalto.



Mais do que as pernas, que ficavam muito por conta das curvas de suas Absurdettes que iniciavam o espetáculo despencando no palco, ele era a cabeça da Gang. E com aquela cabeça cheia de idéias, loucuras, poesia e revolução ele despencou no palco da vida como despencavam suas comparsas no palco da mentira. Era tudo brincadeira, tudo lúdico, tudo mentira. E onde se está a verdade se não na mais deslavada das mentiras? Essa era a “música pra pular brasileira”, como ele bem definiu.
Já em sua derradeira despedida, cheirando o pó branco que se soltara de suas roupas, estavam Cazuza e Lobão, que naquele momento se viam órfãos de seu ente querido.
O poeta exagerado não imaginava que dali a exatamente seis anos e um dia seria a sua vez de partir. Do amigo que usava branco dos pés à cabeça ele herdara aquele andar despojado, aquela música despida, desbundada, longe dos engajamentos de esquerda da época de Gonzaguinha e Chico Buarque, que só mais tarde ele viria a incorporar em seu balançado com suas ideologias, burguesias e brasilidades.



Nesse trajeto, Cazuza continuou dançando, seguindo os passos do amigo e de sua Beth Balanço. Continuou sonhando, com os poetas beats disse que só as mães poderiam ser felizes. Aquela geração de esperança começara com uma perda, e terminaria com outra. Logo, o fantasma da doença que não ousa dizer o nome levaria silenciosamente milhares deles até o azul infinito. E lá eles ficariam, cantando suas canções, sonhando com seus ídolos, bebendo do branco das nuvens e fumando o amarelo do sol.
Cazuza era Logun Edé, era a cara do Brasil, a cara do deboche, uma mentira sincera, um anjo rebelde que beijava o sexo de homens e mulheres, e que depois de muito voar, voou mais do que longe até o azul infinito. Para se encontrar finalmente com o elo perdido. Júlio Barroso o esperava.
Era o final da década de 80. Encerrava-se nesse planeta material o ciclo daqueles que foram o cordão umbilical do rock brasileiro. E os heróis não morriam mais de overdose, mas de doenças e quedas. Quem poderia dizer que na mesma data de Cazuza, 20 anos depois, partiria também aquele que ajudou a descobri-lo e que foi seu melhor amigo? Ezequiel Neves é o vértice desse cordão umbilical do rock brasileiro.



Fase
Cazuza

Depois que eu descobri que era triste
As tardes ficaram mais azuis
Eu descobri. Eu sou triste
Depois que eu levei porrada
Que os urubus se mostraram
Depois da ingenuidade
Entrei numa fase estranha
Não reviro cores
Não explodo a luz
Estou sentado esperando
Como os velhos palhaços do blues
O namorado que levou um bolo
Um garoto perdido dos pais


Raphael Vidigal

quinta-feira, 1 de julho de 2010


O Retrato de Dorian Gray, publicado em 1891, é o único romance da obra do escritor irlandês Oscar Wilde, que viveu de 1854 até 1900, e tornou-se um dos mais célebres de todos os tempos.
Descrito como um “dos clássicos modernos da Literatura Ocidental”, foi classificado pela BBC como 118 na lista dos 200 romances mais populares.
A história, situada na Inglaterra aristocrática do século XIX, gira em torno de um jovem que apaixona-se por sua própria imagem ao vê-la pintada em um quadro, (reproduzindo em águas novas o mito de Narciso) e faz um pedido para que não envelheça jamais, pois com o tempo perderia a beleza estonteante de seus traços. O suspense sobre seu fim começa quando estranhamente o pedido é atendido.
No entanto, o ponto forte da obra não está no suspense sobre o fim do garoto Dorian Gray, e sim nos diálogos costurados por belas descrições de ambiente e das pessoas ao redor.



Constantes citações a obras de outros artistas de todos os campos (música, artes plásticas, literatura, teatro, etc.) e devaneios estéticos e culturais são o mote principal desse delírio afrodisíaco do dândi rebelde Oscar Wilde.
O Retrato de Dorian Gray, além de sua óbvia crítica à vaidade soa como um mero pretexto para que o esnobe autor do livro possa agraciar seus leitores com suas sarcásticas e debochadas divagações acerca da moralidade de seu tempo (e porque não, de outros tantos tempos).
Os controversos e incoerentes pontos de vista dos personagens nada mais são do que o Retrato de Oscar Wilde, que concede a cada um deles, com toques claros de tintas fortes, um pouco de sua rica personalidade.
Os aforismos do autor retratam com tal sutileza de humor e espirituosidade o ridículo moral que regia e ainda rege complexas e pomposas sociedades, que este livro acabou por condená-lo à prisão não por suas críticas ao casamento e aos lords ingleses, mas pelo conteúdo homoerótico.



Nas palavras de Jorge Luis Borges, Oscar Wilde foi um homem que dedicou-se a “causar assombro com gravatas e metáforas”, conhecendo de perto todos os lados da vida. Apóstolo da frivolidade e hedonista convicto fez do momento e da experimentação sua grande obsessão, e tais aspectos são na verdade os grandes protagonistas de seu romance visual.
Após um polêmico relacionamento com Lord Alfred Douglas, foi condenado a 2 anos de prisão por “cometer atos imorais com diversos rapazes”. Depois de conhecer o glamour e a fama, morreu 3 anos depois ser libertado, pobre e abandonado por familiares e amigos.
Ficou sua excepcional capacidade de descrever a realidade através das palavras. “Sussurros ardis”, diria Chico Buarque.

Personagens:

Dorian Gray: Típico jovem rico e aristocrata da Inglaterra do século XIX, que no decorrer da obra vai transfigurando seus conceitos morais por influência do pensamento de Lord Henry, que se torna seu melhor amigo e confidente. Detentor de beleza física singular encanta homens e mulheres por conta de seus dotes, inclusive a ele mesmo.

Lord Henry: Alter-ego de Oscar Wilde. Aristocrata debochado e culto, que acaba gerando situações embaraçosas por suas divagações sobre a vida, sendo taxado de perverso por quem o conhece. Admirador e defensor convicto da beleza como a razão da vida se encanta pela personalidade de Dorian Gray e faz dele seu pupilo.



Basil Hallward: É quem apresenta Dorian Gray a Lord Henry. Pintor que segue as convicções morais da época, é o responsável pelo Retrato de Dorian Gray, que acaba gerando no jovem a vontade de não envelhecer jamais. Nutre por Dorian uma platônica paixão homossexual e faz dele seu ideal de beleza.

Sibyl Vane: Jovem atriz de teatro que se apresenta em uma pequena e pobre casa da época. Torna-se o grande amor de Dorian Gray, até que ele descobre a verdade sobre esse sentimento.

Ver também: Wilde (1997)

Filme sobre a vida de Oscar Wilde, dirigido por Brian Gilbert. Com Stephen Fry, Jude Law e Vanessa Redgrave no elenco.



Raphael Vidigal

quinta-feira, 10 de junho de 2010


Era abril de 1989, provavelmente em um outono menos frio que o de agora, e o jornalista, cronista e escritor (se todas não forem a mesma coisa) Caio Fernando Abreu escrevia sobre uma moça de 21 aninhos, verdes olhos, platinados cabelos e cotê demi-punk que, sem lembrar Gal, Marina ou Elis, encantava a todos (inclusive uma Marisa Monte presente na platéia) com seus agudos de cristal.
Os mesmos 21 aninhos que ela tinha na época se passaram e, por incrível que pareça, a moça rejuvenesceu. Pintou de pretos os cabelos platinados que já não têm mais nada de cotê demi-punk, colocou uma roupa de bailarina e manteve os mesmos verdes olhos. Além disso, a outra coisa que não mudou foram os olhos que a admiravam empolgados em mais uma de suas histórias, como a contar reais contos de fadas, tanto infantis quanto adultos. A moça também mantém os mesmos agudos de cristal.



No início do show, enquanto pais se agitavam para tentar descobrir de onde ela surgiria, filhos se preocupavam apenas em gritar: “Partimpim, eu te amo!”
Neste exato momento, até que nem tanto inesperadamente assim, Partimpim ilumina o palco sob uma capa de robô cor-de-rosa, dançando de um jeito meigo, ás vezes engraçado, indiscutivelmente contagiante, anunciando como será divertido aquele espetáculo, que logo se inicia com o Baile do Particundum, parceria dela e de Dé Palmeira (ex-integrante do Barão Vermelho, nome em homenagem ao personagem do desenho animado Charlie Brown).
Mal encerra-se o primeiro número e os agudos de cristal da moça voltam a brilhar bonitos em uma composição só sua, “Menina, Menino”, para em seguida dar início à sua bela performance como intérprete com a música “Saiba”, do ex-titã Arnaldo Antunes, um dos pontos altos do espetáculo, onde ela canta Hitler e Freud e todas as crianças a acompanham. Uma didática impressionante.



Enquanto desfila pelo palco, a moça improvisa instrumentos em pratos, brinquedos, até mesmo guitarras multi-coloridas e se veste de bailarina a la Edu Lobo e Chico Buarque, come o alface temperado por Augusto de Campos e passeia no trenzinho caipira do maestro Heitor Villa-Lobos e do poeta Ferreira Gullar, aqui meros amigos da criançada.
O espetáculo, à priori infantil, guarda uma nova surpresa a cada instante e eis que não mais que de repente a cantora dos verdes olhos inicia uma alucinante caçada às borboletas de Cid Campos e Vinicius de Moraes, para depois ir em direção à Alexandre, o Grande, de Caetano Veloso. Nesse número, a canção é de tal maneira transformada em brincadeira infantil que passam despercebidos aos ouvidos dos pais mais aflitos com uma possível homossexualidade de seus filhos, os versos que falam sobre os amores gays do grande guerreiro.



A moça não perdeu mesmo a ousadia, até quando canta para a criançada, em algum fundo musical de seus óculos verde e rosa de papelão ela ainda guarda leões que solta na rua, gatinhas manhosas que deixa em casa. Ao lamber sua guitarra cor-de-rosa, em uma verdadeira encarnação feminina de um Jimi Hendrix com filhos para criar, ela traz para as crianças de todas as idades um espaço lúdico para criar, brincar, imaginar, sonhar.
Porque essa moça, minha gente, é tudo isso, como afirmava Caio Fernando Abreu naqueles distantes tempos idos de 89: “a maior revelação da MPB (hein?) nesta virada brusca para os 90”, nesta virada brusca para os 2020, 2030. Adriana Calcanhotto provou que tem talento de sobra para brincar com categoria nesse cenário chamado música brasileira. Talento de sobra para uma só Partimpim. E por isso mesmo lança a 2.E quem sabe a 3. Ao encerrar o show puxando aquele coro típico da criançada ela deixa no ar uma esperança que faz esquecer possíveis pudores que se adquirem com a idade. Todos parecem dançar empolgados com a idéia: “e vamos nos ver de novo, e de novo, e de novo, e de novo, e de novo...”



Tomara. Pois ainda há tempo para uma última confissão: “Partimpim, eu também te amo.”


Raphael Vidigal

Fotos de Mauro Ferreira.

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