segunda-feira, 22 de agosto de 2011



As lágrimas caem por elas mesmas. Nem que você queira, me levará ao centro de reabilitação. Estou na Motown. Anos 50. Negras vozes, melodias negras. Amores desfeitos na gravidade de um contrabaixo.

A tinta é uma mágoa na sobrancelha. Os cílios cortinam, mas o olhar revela. E a boca adquire o remorso compartilhado. Coração de alicate nas tatuagens. Marcas no corpo. Rouca alma.

O ritmo do blues. A batida do jazz. A batida das máquinas. O entrecortar do alicate. O balanço dos vocais. Remexendo bebidas, seringas, cabelos colados. Quietos. Esvoaçantes. Voa-se muito pela fumaça. Amy Winehouse. Assim meio perdida. Em linhas quase medíocres.

“Love is a losing game”. Eu sei. Quando a cantora apareceu, não era uma menina tímida. Disfarçava o sorriso melancólico. Mostrava a dor. A postura altiva lhe recobria os cabelos ao alto de seus pés, saias bem engomadas, maquilagem de alta fantasia.

Foi tudo de verdade. Não foi um sonho que a gente teve, como aconteceu com Cartola, já disse Nelson Sargento. Nem uma epígrafe alinhavada por Oscar Wilde, a mostrar sua alma, das profundezas. Foi tudo tão real e artístico que houve quem descambasse a querer mostrá-la como uma de nós. Com os mesmos problemas. Maquilagem borrada. Seios de fora. Cicatrizes espalhadas pelo corpo magro, lânguido e aquela voz.

Era de verdade, por mais que se queira crer que não. Que fosse mais natural e óbvio tratá-la dentro de uma embalagem. Que ela fosse negra, criada nos subúrbios americanos. A sujeira, a estranheza, a excentricidade espaireceu como gotas de poeira. Incapazes de impregnarem vestidos alvos.

A sobriedade que cobra-se dos artistas parece ser a mais absurda das realidades. Pois a fantasia daquela menina egressa diretamente dos anos 50 americanos trazia na loucura o ponto de contato com estrelas claras. Cintilantes? Gostariam de dizer. Talvez um pouco mais. A palavra cisne não expressa a brancura do vôo da ave, escreveu Patti Smith.

E todos os badulaques, tintas, acessórios, imagens não capturam a voz. A voz que só é ouvida por ela própria. E por quem tem no coração uma mágoa. Verdadeira, realizada, bem guardada. Lustrada com cuidado. Amy Winehouse colocou sua mágoa na voz. Não o contrário.

E se um dia a mágoa é líquida, não petrificada como busto estóico, por que não permiti-lo à sua cantora a imaterialidade do que é eterno?

“Minhas lágrimas secam sozinhas.” Descansam as manchetes. Resta uma voz, com tudo o que quis dizer.

Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 23/08/2011.

terça-feira, 9 de agosto de 2011


O teatro de Jean Poiret chega ao olhar do público mineiro através da lente de Miguel Falabella. O ator, diretor e adaptador do texto, “A Gaiola das Loucas”, trouxe para Belo Horizonte versão reduzida do espetáculo, apresentado no Palácio das Artes nos últimos dias 5, 6 e 7 de agosto, e que por motivos estruturais teve que abrir mão do encanto e da magia do cabaré e das performances musicais dos personagens.

A peça arranca risos do público por motivos díspares. Se por um lado o humor físico e as patacoadas garantem sonoras gargalhadas, as tiradas reflexivas de Falabella merecem melhor destaque. Fazendo uso do jogo habitual de conjugar o grotesco e o suave, o ator encarna o marido do casal gay balançando-se entre o charme e a vulgaridade.

O interessante a notar é que o humor agressivo e muitas vezes politicamente incorreto de Falabella, que sem moderação, comanda a peça, jamais agride o público. A ausência de Diogo Vilela é notada, embora Sandro Cristopher se esforce, e os coadjuvantes percam o fôlego quando não contam com a presença do diretor em cena.

O cenário provocativo, recheado de referências explícitas ao universo gay, destaca-se mais como personagem do que o restante do elenco. O único número musical apresentado é dos melhores momentos da peça, numa encenação “comportada” de Sandro Cristopher. A música, a iluminação e o cenário alimentam a sensação de desejo, pela consumação irrompida. Desejo este, saciado em pequenas doses, nos números improvisados que remetem à realidade próxima do brasileiro, que entre Dilma e Alcione, se vê refletido no espelho da França, quando se percebe: o amor e o riso talvez sejam as armas contra a caretice.

Sem levantar bandeiras, porque não pensar numa mensagem implícita? Que a violência e o preconceito sejam varridos pra debaixo do tapete, rosa e com detalhes de oncinha.



Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 09/08/2011.

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