segunda-feira, 28 de novembro de 2011


“mais vale ficar olhando para o céu do que morar aqui. Lugar mais vazio, mais vago! Nesta terra o trovão bate e tudo some.” Truman Capote


Dançavam num salão celestial. Os pés eram carregados por pequeninas asas. As mãos sopravam de leve pela cintura, como a libélula toca na água. Os rostos se encontravam em narizes empinados e bocas amenas. Um intervalo condensado e eterno entre a proposição e o convite. Duas hesitações. Duas vidas em suspenso, executadas no sentido contrário aos ponteiros do relógio.

Quando acordou, lembrou-se de sua partida. Não acreditava que se fora. Aparecia com tanta realeza naquela noite. Movia-se e seus passos eram sentidos no assoalho. Sua presença era física. Não havia dúvidas.

Haviam se casado, recordavam lembranças, memórias novas. Aventuras jamais vistas em planos retilíneo-uniformes. Lívida e dispersa em aves de frases cortadas. Pontiagudos bicos dourados. Brincos da Deusa Africana puxa as orelhas embranquecidas.

Ladrilhos, esses que se acostuma a passar sem legar referência. Ladrilhos que se uniam às patas do animal-carruagem. Esmerilhados e brilhosos. Cítaras desprevenidas eram lambidas, corando-lhe de rubor os tentáculos. Curando-lhe a maldição azulada. Currando-nos sem traquejo ou malaio.

Você não imagina a falta que faria na minha vida, se algo lhe acontecesse. Tanta vontade em fazer as coisas certas, acertar os passos. Inunda em sorrisos espaçosos. A gente existiu

Uma menina a andar de costas num chão espectral (de vidro) espiral. Espelhado. Porque a vontade é maior que a necessidade. Carpideira, carpintaria. Fosse os olhos da menina. A gente se acostuma a essa visão embaçada da

realidade

Parece a dança das cores lisas. Perece. Marasmo. Maçãs e laranjas. Como uma vitória-régia se abre: cada vez que tocamos seu nome é como se ela está um pouco entre nós. Não dá para se camuflar uma emoção. Não se abrande, a fome do leão, o vento carregando formigas, cigarras, louva-Deus. Que a gente a maior parte do tempo não se vê e sente a nossa presença. Deixamos reflexos.

Herdei a impaciência dos montes ancestrais, por vezes é quase inacreditável a sua morte.

Crisântemos enfileiram caminho da nossa valsa para as estrelas. Na divisão dos meus olhos, encontro da onda e areia, trisca meus cílios: Diáfana.

Raphael Vidigal

Pintura: "Bailarinas de azul", de Edgar Degas.


“Quero rasgos de lirismo tão incoerentes no meio da lama que cheguem a soar absurdos, com momentos de loucura.” Caio Fernando Abreu


Claudete não é Soares, nem queria ser cantora. À verdade, desconheço-lhe sobrenome. Aviso sua profissão tão antiga quanto outras: servir aos homens. Pode-se identificá-la (Claudete, a secretária) facilmente como uma solteirona macilenta que fuma ou inala litros de cigarro entre telefones ocupados e surdos, crispados por um amarelo ocre.

Estes (os cigarros, não os telefones) Claudete pede ao velho pai que sempre a amola com questões sobre impotência, que os compre. Não que ele seja um velho tarado, nem que não seja. É que Claudete sem sobrenome trabalha vendendo produtos naturais que ajudam o homem (e a mulher) a ter desempenho melhor esperado na cama. Como já deve ter dado para perceber, são produtos energéticos e revigorantes.

Secretária, assistente, ‘guenta-tudo-e-reclama-à-beça’, Claudete trabalha para um famoso radialista de Alagoas. Nisto, embaraço-me em duas frases iguais: O qual, apesar de muito famoso, precisa juntar a seus honorários tal atividade ‘empresarial’. Ou: Que para garantir sustentos robustos a seus honorários alia o jornalismo à publicidade.

Sobre a origem e confiabilidade desses incríveis produtos naturais, os clientes atestam com vultuosos sorrisos nos corpos geralmente moles e gordos (relaxados). Embora o Ministério Público já tenha tomado diversas vezes os mesmos na lista de ‘suspeitos’ (os produtos, não os clientes).

Não me parece nem de perto que Claudete seja feliz (satisfeita seria a palavra) com alguma coisa. Não pelo fato de estar sempre xingando, aos berros com a outra secretária ou agüentando com sorriso bufo as brincadeiras assanhadas do patrão, que lhe passa a mão pelas cadeiras rechonchudas e nem um pouco atraentes (ou atrativas).

O que me dá a real certeza dessa sentença equívoca é a língua nos dentes. Sim. Acreditem: Claudete tem mesmo a língua nos dentes. Não é presa. Nem é ditado popular: ‘dar com a língua nos dentes’. Não. A língua de Claudete é nos dentes. Talvez seja isso que a tenha feito aceitar o emprego chato. Quase nunca oferecem alimento a quem tem a língua nos dentes. Pelo medo, obviamente, de que esta trisque a comida e a lance ao longe.

Mas na monotonia dos dias de telefone ocre e cigarro filtrado de Claudete, um dia chegou à empresa (um pequeno quarto com caixas dos produtos empilhadas) um sujeito. Digo sujeito porque não era um animal. Só que nem rapaz eu afirmaria, tão afeminados os seus tiques: escovava os cabelos lisos para trás da orelha, conferia o tamanho das unhas, olhava-se no espelho de mão.

Se tinha nome, Claudete não perguntou (tem a língua nos dentes), foi só espirrar que o sujeito se transformou num tal gesto que pensei eu que ele iria agarrá-la e descê-la escadas abaixo. Ali mesmo, naquele instante, eu repuxei meus olhos furtivos e intui o que não se passava.

O moço sujeito altruísta era argentino. Não conhecia a língua. E a língua do corpo, vocês sabem, soletra melhor que qualquer parêntese. Pois na sua terra espirro era sinal de orgia. Não, não a Argentina. Ele era argentino dos Andes. Pois numa manobra radical e soberba, arrastou Claudete para o terreno baldio ao lado da empresa, arriou-lhe as calçolas e mandou ver.

Literalmente esborrifou na crioula gorduchinha sua saliva saliente em tridente e línguas. Acontece que nada se passou de diferente. Era comum aquele lugar ser usado para motel improvisado. Não com Claudete, naturalmente. Na maioria das vezes eram casos entre cachorros e gatos, que não falam a mesma língua. E esse era mais um desses. Claudete latia, o argentino miava.

No dia seguinte ela não apareceu para trabalhar. Deitada na cama havia tomado uma decisão drástica. Dizem que o ar empesteado de rajada e mormaço, vindas de seu cigarro aceso na língua entre dentes iluminou a sala. Como morava sozinha e o pai já havia falecido há vintanos (20 anos) ganhou arestas de boato. Ligou para o radialista: Queixava-se de dores de hortelã.

Raphael Vidigal

Pintura: "Elefante Celebes", de Max Ernst.

terça-feira, 22 de novembro de 2011


“Deus é a projeção exterior do desejo de perfeição do homem” Feuerbach


Como comemoração ao conto que havia escrito. Desci à cozinha, e quebrei um prato. Seguida, celebrei a vitória com o príncipe negro: Átila. Permita-me não recorrer à figura histórica. É que esse nome, para mim, diz respeito somente a meu conhecido íntimo, e essa é uma das benesses a que me dou o direito.

Um cachorro de personalidade felina: arredio e esnobe. Pouco se mexe quando alguém aproxima. Jamais balançou o rabo. Nega-se a dar a pata. Não se considera um animal da espécie, em suma consciência. As perguntas mais freqüentes que se faz, pois pouco (ou quase nada) se dirige aos outros, são: Qual o sentido da existência? Quando?

Nunca lhe respondi por que a pergunta não é endereçada a mim, e naturalmente respeito privacidades alheias. É dono dum cheiro forte, e olhar guloso. Tem uma bola amarela e vermelha com a qual não brinca. Ocorreu depois de empanturrar-me de bolo de cenoura e chocolate. Fui à sua casinha para uma visita.

Bom anfitrião, não me convidou a passar pelas cercas, nem a me juntar à sua sugestiva agonia. Encontrava-se prostrado. Em sinal de que havia a resposta se julgado a ele apenas diante à sua condição extinta. Sabia que a condição é um destino que debocha sem trazer receita. Inconformado, nunca fora. Não se podia dizer que almejava uma forma para lhe suceder o contrário. Portanto não se lastimava, prostrava-se. Naquele estado em que a razão faz charadas e a emoção acompanha.

A campainha soou em falso alarme, admito que o príncipe negro alimenta-se na hora inexata. Salivou a língua entre dentes pequenos. Todo ele pequeno, terreno, absorto, abstrato. Se um rato passasse à sua frente, bocejava. Conhece a razão das horas seguintes e o incrível compensar do mundo em linhas furtivas.

Antes que eu pudesse esticar a mão, ele ergueu a pata. Ali duas compensações distintas, dois contornos inexatos. Ele, num refrear absurdo de príncipe e cachorro. Eu, numa urgência erma de plebeu e gente. Despedimo-nos ao som da língua que nos ensinaram. Latindo em senil silencioso.

Tudo o que se passou em minha congruência, nem sequer sequei a tocá-lo.

Mas o prato está quebrado.

Raphael Vidigal

Escultura: "La Vague", de Camille Claudel.


“Então um homem não pode simplesmente abrir uma porta e olhar?” Clarice Lispector


Acordei louco, uma manhã de setembro. (fatos controversos vão se sucedendo sem que se dê importância à loucura ou a mesma seja mencionada); o final termina ao inverso. Numa bela manhã de setembro, acordei louco. Com um bilhete: “todas essas esferas construídas desabarão”.

Olhos ardem como ampulhetas carregadas de areia. O tempo, cruel lagarto. “Estrela Maga dos Ciganos” – Elomar. Místico medieval e sertanejo. Viola cravada, retirada da pedra, qual espada. Encolhe o deserto de seus ombros, patas nos córregos cansadas. Cigano, esparsa fadas fitas jasmins cabelos. Loiros e cobiçadas morenas. Peito alargado, dum cavalheiro das cortinas. Andarilho das minhas aspirações aspirinas. Mímico de minhas ilusões (originais) jogadas.

Repousa tuas expectativas na sombra duma árvore frondosa, lá jazem esquecidas, como cinzas de um cigarro recolhidas pelo austero poder. Chora tua saliva fora de lugar, que encontrou nos olhos abrigo melhor que a boca.

Caverna repentina, repetindo os repentes dos que caminham no sol a pino, cometendo crimes como o “Estrangeiro”, romance-vivo de Camus.

Caminha feito tartaruga, fuga da terra lentamente, nada n’água tuas mais serenas mágoas. Assenta a abelha bem dentr´dedos hasteados para o ventre da mãe serena. Enterre tuas crias e as deixe ao sal molhado do mar; quem sabe ele as dê destino melhor que tua circunstância irrefreável. Fuja das próprias agruras.

Nem o cacto tem destino perverso e covarde que o ser humano. Coma do teu próprio leite, esborrife o sulfuroso óleo de tua seca cara. Fira fera firme. Amoleça a carne suplicante. Berre fulgurosamente. Arme-se dos dentes ao morrer do dia; o sol que queima tuas colinas está bem atrás. De você

“E assim os dias, os últimos dias, turvam-se na memória, nebulosos, outonais, semelhantes a folhas de árvore” Truman Capote

Que esforço/mérito há na retribuição pura e simplesmente? Como explicar que as ameixas mais machucadas, de carne mais avermelhada, são justamente, doces? Dum verde que só se vê por baixo, reluz em sua aspereza tornar-se outra cor, escura.

Maconha chinesa. O sol se espreguiça em lentes. Puxa os riscos do caderno infantil da natureza. Esticar a corda da inocência. Náufragos, testemunhas. Laivos num susto! Talvez possa ser nossa miséria e contribuição. Tentando dar forma a coisas informais. Chega uma hora que essa vida acostumada te cansa, mácula. Tinta e verniz, a cheirar.

Marcante. Mercante das prováveis sobriedades respingadas. Faísca um ranço de pavor do I mundo. Grunhido, pavor pequeno. Bocejo: soletrar crismas, cofres, rachaduras. “Pequeno Circo Místico”, de Aldir Blanc:

“Todo o meu amor para o homem-bala, atirado aos leões. (...) Pra contorcionista, que padece da coluna. (...) Pro atirador que voltou a faca, contra a própria jugular...”

Melado. Cor de pastel. É um privilégio estarmos embolados aos arames farpados. Fraques franzindo as arestas do corpo que TE deforma. Lã, tecido, barbantes, aferraram-se. Junto a uma pose-cerimônia afã. Pregos, engrenagens, mofo, cascalho. O escaravelho da veneziana repica sonhos, esquivas tentativas dum passado vão. “faltava-lhe perspectiva e ele exibia pouco talento para detalhes” Truman Capote. Agulhas dissimuladas espetam o chafariz da dor. Chamariz chama risque. Esfregando o óleo. Secas. Solvente. Indissolúvel desejo de chamar-lhe Anita. Uma travesti aguda. Eu já vi essa mulher antes. Eu já vi essa pessoa antes? Eu nunca mais as verei? Brusco movimento, água derramada. Um corte, na mão. Quero cuidar de você para sempre. Borbulhar. Olhos de gato. Dimensão abafada

Brando. Pasma. Mansa. Áspera.

Rangido de janelas e almas. Arrancando insone rumo ao desespero arrefeceu e pousou com suas pequenas rodas. Encabulado pela visão camerística da cidade: bandolins de Luperce Miranda!

Tudo parece precoce. Tubo turbulento turvo. Vulgar, agnóstico. Despojamento beija o bico do sabiá. Curva-lhe as unhas. Cai num “Abismo de rosas”, de Canhoto. Vocações espremidas. Repentinas, variadas.

Admira, espreita insólito. Curvas contam as fibras e fímbrias animais humanas despidas nuas. Chora um amparo. Película de um rolo chamuscado: Perseguem de toda maneira a verdade pura em busca de um conforto. No máximo, aproxima-se. Há sempre uma neblina entre muros. Há frases bonitas, mas o resto é de uma incompletude inconsolável. Uma coisa de crítica à própria obra. Num harpejo virou um anjo.

Portas abertas assombram.

Raphael Vidigal

Pintura: "A Lua", de Tarsila do Amaral.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011


“como uma folha se dobra com o vento ou uma flor se verga sob a pata do leopardo, entregar-se ao seu poder.” Truman Capote


Dulce Veiga,
as coisas não estão fáceis (ando lendo muito Kafka, daí, acho, que o tom lamentoso...)...trago um sintoma na gaveta (nos arquivos) e tenho encontrado imensa dificuldade em revelar minhas alucinações, especialmente essa doença (pregação, que seja), que é uma coisa que vejo necessidade de FAZER ACONTECER, como um álibi que me permita dedicar mais tempo ao que realmente almejo: sonhos, ou, a magia.

A pressão é grande para que eu desista e volte ao mundo da realidade que tanto me chateia, e tenho tanta vontade de entrar em outros cantos, labirintos espirais, soturnos, mas em certos momentos o sintoma se esgota, quase desiste, pinço uma frase de Tennessee Williams (um dramaturgo enfermo de insônia que lhe afetava o dia todo: sonhava acordado e dormindo – ou seja, não dormia o repouso linear e estrito, mas somente naufragava ares e desembarcava navios nas estrelas):

“Não quero realismo. Quero mágica. Sim, mágica. Tento dar isso às pessoas. Sei que deturpo as coisas! Digo o que deveria ser verdade. Se isso é pecado, castigue-me!”

É só o que peço. A verdade (será que ela inexiste? Qual a diferença entre o existir e os sonhos? O nada? Existe na realidade? E na alucinação?) é que as amarras suspensas no ar, na imaginação, na sugestão (SIMPLES SUSPIRAR) deixam as pessoas perdidas, sem um encosto firme e rígido que lhes dê confiança, convicção, serenidade. Para elas, entender é ultra-importante, e eu utilizo pouquíssimas conjunções com a intenção de ligá-las. Sujos, soltos, abandonados, irrestritos, numa esfera absurda e austera, não temos sentido. Sentido amor, sentido dor, sentido à vida. Não há. Então para que perder tempo (História do Homem) querendo dar vazão, organizar, simbolizar o que por si só e só pó e si a o tempo todo é insuficiente-inexplicável? E se a gente percebe que o mundo é absolutamente irrelevante.

Vejo-me perdido, recolho nuvens no jardim de margaridas. E olha, elas são amarelas, vermelhas, brancas, boninas, mertiolate, de todas as cores! E eu não quero me aproximar com uma lupa para descobrir que são transparentes (fruto da minha morta natureza viva). Pois bem, lembra-lhe Cèzanne? Aquele homem nunca pisou no chão de terra batida, todas as suas sertanias eram impregnadas de falso alarme, mentira deslavada e específica. E é de uma maravilha! Que chega a me causar arrepios (essa sensação tola e aflitiva, será que ela existe?)

O sintoma não está cercado. Nem solto. Porque encontra imensa FALTA DE APOIO. Nem uma madeira de lei, somente algodões desgarrados. Estamos todos sozinhos, perdidos, sem pendores, pêndulos ou hora marcada, é preciso ressaltar, nesse abismo de azul marinho e peixes que flamejam cores como o amarelo ovo. De todos os lados, e eu mesmo chego a desconfiar se é uma doença para ser ‘transformada’. Nem toda varinha mágica resulta em fadas, cães de Hades, caos da manhã bem clara (que comprime toda a rejeição de dentro pra fora), e essa é minha ESPERANÇA.

Mas ao lado de minha desconfiança comigo próprio vem uma vontade absoluta (opaca) de seguir esse tortuoso caminho. É confuso, drástico-dramático, não sei... pois bem, o subjetivo é que nem crias ou criadores, nem os criados, demonstram muito entusiasmo em se envolver-enveredar nisso.

Pois eu lhe digo, antigamente a terra era quadrada. (“Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.” Clarice Lispector) Queimaram as provas. Quem garantirá que todas essas provas de agora não serão uma noite iluminada, queimadas? Destruídas em algum tempo, em outros ângulos, perspectivas sementes. Como diz o Mario Quintana: “A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas”.

Até mesmo cresce a desconfiança incontínua de que os animais irracionais (?) se comportam sobremaneira a pensarmos sermos nós (enganados-iludidos), reles e ingenuamente, seres dominantes. O que configura estratégia repetida vezes usada (suja e esfarrapada) em noivados-casamentos-namoros, de toda a espécie. Ou a mais abundante, em termos de polegar opositor, delas. Nu mínimo.

E já se ouve no rádio interlocutores anunciarem que contrair determinada doença tende a eliminar as rugas. Tende? Ou pende? Ou sonha? É tudo tão vazio e inestático. Tão se movimentando no breu, “dentro do silêncio e do tempo”, como diz o Caio Fernando Abreu, pra rimar. Para fugir desse massacre, talvez um alento.

Mas isso não resolve o meu problema...a exposição do amor pode ser prejudicial, eu sei, (o que faz mal e o Q faz bem?) mas urde a expectativa na busca presencial de alguém que me ajude de alguma maneira nisto. As coisas estão confusas, misturadas, complicadas, silvas. Mas é que eu possuía. Eu possuía uma técnica inviolável. E ela agora se perdeu (abriu-se) com esse sintoma. E por ter sido você, me lavado alguns elogios, talvez eu esteja me agarrando nessa possibilidade de que você, mesmo imersa em várias e com certeza mais urgentes alucinações de sua própria natureza, você, talvez, possa me ajudar.

Vou entender se me disser que é IMPOSSÍVEL (tão bonito, como um sibilo de pássaro ao romper a casca em revoada), tudo bem, eu entendo, faz a arte, é o mais NATURAL, (presa, decapitada, insensível natureza late) inclusive...

Mas não posso deixar de lhe fazer esse pedido ambicioso, afinal me restam poucas (quase nenhuma) alternativas/pessoas/setas/sentidas que acolheram com otimismo minhas alucinações, meus sintomas, minha doença, meu sonho (assim pequenininho, em minúsculas, tão solitário e sozinho rugindo). E a quem reciprocamente, admiro. No caso, você é uma dessas setas, pessoas, alternativas, serestas.

Recorro a você, Dulce, na esperança de que compreendas, e pensando que talvez em algum momento já tenha passado pela mesma barreira de aceitação-intransponibilidade e medo-luta. E mãos se estenderam sinceras para ajudá-la.

Mas ao mesmo sabor do TEMPO, SINTO CERTA (ou errada) dificuldade em lançar-me ao abismo, mar do infinito, pensando se não terei privilégios por certa insistência bruta numa loucura rasa, encoberto por uma SOMBRA de DÚVIDA ETERNA sobre o meu suposto “sintoma”.

Sem pretensões, pelo contrário, na verdade (de novo essa perseguição arrogante) guio-me quase somente por intenções-sugestivas capazes de digerir com receio, coragem e valentia todas essas estrelas soltas qual pipas sem linhas (“Uma linha pode ser direita ou uma rua. Mas o coração de um ser humano?” Tennessee Williams), largadas e entregues à sorte. Sem rumo ou destino.

Tento, por assim dizer-sussurrar-investir-soprar numa nova direção, nova (maybe arcaica) linguagem, onde não precise ser dito tudo. Fique assim num escuro a ANTI NARRATIVA DOS SONHOS, DO MUNDO, DO CIRCO PEGANDO FOGO, COM ÁGUA AO ENLACE, ALCANCE DE QUEM QUISER SEGURÁ-LA ENTRE DEDOS TORTOS. Tão macios ao agarrar o incompreensível-livre. É isso o que viemos-vemos fazendo. Tão entregues ao norte, ao mote, relegados a um plano de afastada relevância, qual relva em jardins de ouro e penas.

E a tua recepção calorosa ao meu sintoma foi como um sopro, um alento para uma chama que estava quase apagada, num desânimo que me fazia querer largar dessa desesperadora perna esgarçada do sonho. Mas voltemos aos atos, como-comum ao teatro:

“Jaguadarte
Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.” Lewis Carroll


Que estripulia fantástica desse desafiador dos espelhos mágicos! Volta-me a ânsia de equilibrar-me em cordas feitas do mel e do vento. Assim mesmo, meio provisório, improviso de YAMANDU COSTA, Mergulhador de CORDAS INÓCUAS, sem infringir nada conquanto tudo onde pulse a trombeta da FANTASIA MÁGICA E SONHADORA. Pra que entender a vida se podemos senti-la? Pra que querer comprová-la quando podemos aguardá-la puxando manilhas aos dentes como um cão que lambuza a brisa na cara!

Uma pequena observação:

Me falta a calma dos Grandes Poetas.
E o orgulho dos Grandes Artistas.

Estoy más pra dublê
De escritor-paráfrase!

Tópicos para uma obra:

Reduzido: ao essencial
Conferindo: tema de cristal

Minha Missa
Luba
Cheia de
Idiossincrasias Alteradas


Dulce, não se constranja, nem se sacrifique demais por mim. É tudo o que peço, imploro, cantar em seu ouvido. Mas não se sinta obrigada. Nesse mundo de irrealidades e contrastes, não existem obrigações, somente ilusões. Portanto, SINTA-SE. Sente-se à vontade, para recusar, mesmo que a priore, recolher essa GARRAFFA DE SOCORRO PERDIDA. Eu estarei sempre distante, mesmo na presença ou nas entranhas, estranhas profundezas de um a mar sem fim.



Querelle,
Saiba, entendo seu desassossego...
Eu mesma estou assim... Ontem, cantava à Dorival Caymmi que tenho vontade de espirrar a pimenta que me aflige e dedicar-me a algo como paisagismo, refletindo paisagens menos dolorosas, doridas.

Cantar é um esforço. Você não imagina. A ponto de arrebentar minhas cordas vocais, pois não tive tempo de trocar os comprimidos azuis pelos litros de uísque. Ou não ir regar as plantas, e deixar para as ervas daninhas, que se esgueiram e comem as suas beiradas indefesas.

E no final, plantas mortas, vozes no fio do desgosto e aplausos. Apupos e vaias trariam mais dignidade à minha vida de revolver a lama ao encontro de frutíferas inspirações.

Hoje, agora há pouco, já que estou de licença médica, depois de dois dias anestesiada e em estado de choque, fui visitar uma cadelinha...

Eu mesma a resgatei da rua, dei banho, escovei os dentes, coloquei numa clínica de reabilitação (parecida com a que freqüento há quase 40 anos); ainda assim, sou uma mulher conservada, dizem-me os olhos pútridos de passados suntuosos; e disse, balbuciei para a moça que gostaria de cuidar de bichos.

Pois bem, você vê, não estou lendo Kafka (há um tempo perdi essa visão que dizem da vida, de poder enxergar com os olhos, e mesmo o braile me cansa, braços muito machucados por seringas constantes), mas meu Tom (sem Zé, sem Jobim), é igualmente lamentoso... Vejo (ironia) tanta injustiça ao meu redor, nas construções as picaretas sempre em punho, e são os que recebem elogios rasgados, sendo que do presente nada sabem. Sentem. Pressentem.

Apenas latem e miam tão falsamente um barulho que envergonha os animais que portam com tanta graça e realeza divina, digna, ingênua, pura esse som que ressoa em meus ouvidos que só ouvem música, só falam música, tocam música, vêem música.

Querelle, sinto-me farta da música. Música de fadas, duendes, bestas, gregas mitologias só me trouxeram sofrimento. Fantasio-me todas as noites com coroas regadas de pérolas e perfumes das flores comidas subindo às orelhas. Mas já não sinto cheiros. Tornei-me presa solta de mim mesma. Como esse mundo de fantasia e realidade que tudo deglute, sem dizer porque, sem trazer desprezo. Impassível e sereno.

Relegando-nos tudo mais que não seja abandono. Sim, estamos soltos. Sim, estamos livres. Tentamo-nos agarrar, denominar regras, condutas a serem seguidas. E essa é a grande tristeza. Ao fim, ao começo, ao meio, somos conduzidos para o mesmo grande pequeno estreito largo buraco negro onde mora o Lagarto (Monstro!) do Lago Ness.

Nem pense nisso, meu bom. Foram todos embora. Uns embarcaram para a Europa, outros suicidaram, alguns mantém sítios no interior de Minas, como, por exemplo, a Adélia Prado. Todos chegaram, partiram, quebraram, ao NADA. Tão INABSOLUTO quanto uma bebida borbulhante de gim regida por uma faca. Esqueça essa faca entre os dentes, solte? Do que adianta? Prenda? Acreditas, por acaso, em alguma lenda urbana, rural suburbana?

É por isso que lhe presenteio com Paulo Moura. Ouça o seu saxofone, e durma. Mergulhe no mundo de sonhos, sim, mergulhe. Mas não pense em tirar de lá nenhuma garrafa de socorro, porque imersos em tinta nanquim, movediça e soturna, quanto mais nos movimentamos, mais afundamos.

Você deve conhecer o Rimbaud, e a última vez que nos correspondemos ele estava num desânimo tal com a vida que precisei ser novamente internada, às pressas, nova crise de nervos, estados de choque quem sempre voltam. De uma maneira ou de outra, essas encruzilhadas nos ricocheteiam e jogam-nos de volta à mesa, sem cartas (a propósito de Cèzzane, tem uma pintura muita bonita a esse respeito, que nunca VI é bem verdade, mas isso não vem ao nosso caso, posso SENTI-LA, como me pedes de passagem no final desta carta).

Se posso te consolar, é dizer que entendo seu DESAPONTAMENTO, e que é normal os lápis afiados perderem as mãos, os pés, os membros, verem-se como uma caixa de mágico que desintegrou sua estrutura de madeira óssea, mas mantém o olho invisível ligado no espaço.

Compartilhamos. Tenho sofridas convulsões resultantes de uma simples maneira, mania: VONTADE DE CHORAR. Sinto que não há solução. Nem perguntas atingidas ou respostas precípuas. Não posso lhe supurar promessas, pois como vês minhas feridas transcendem à pele e a luz. Também não devo incutir ao seu espírito viajante esperanças, muitos náufragos nesse mar de nosso Deus, o seu deves ser mais um. Eu mesma já me perdi dentr’eles, “como me perco no coração de alguns meninos”, diria García Lorca.

Eu mesma, essa Dulce Veiga quebrada, exaurida, com idade para ser tua mãe, caco de vidro que já nem raspa o pé de quem em mim pesa, pisa, tentei dedicar-me a traduções de Rilke. Desastre. Pensei em abrir uma cafeteria literária, desesperei-me com tanta angústia refletida nos holofotes de fora que se confundiam para dentro. Mas isso, se acontecer, não lança a garrafa ao mar, pode ser que o socorro venha, pode ser que o azul marinho de peixes flamejantes engulam sem dentes seu amarelo ovo: ouro.

Pode ser....
Suspire, suspire sempre.
Sofregue, sofregue e arrebente quantos forem desnecessários ventres.
Segue teu impulso;
Soergue lama, mas sibile somente o que teu coração sente, mesmo que
Seja e haverá de ser INÚTIL COMPLETA MENTE.

Raphael Vidigal

Imagens: "Portrait of Ralph McWilliams", de Paul Cadmus; e Marilyn Monroe.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011


“Detesto coisas dignas, impecáveis, engomadas, lavadas com anil: aceito nos outros, levando em conta, inclusive, o tempo em que foram feitas. Mas não é mais tempo de solidez: a literatura tem que ser de transição, como o tempo que nos cerca.” Caio Fernando Abreu


Uma rosa num copo d’água. Mesmo que não haja motivo, sombreei cravos presos, botões de rosa já sem vida. Abraça-me na minha carência. Estou me tornando cada noite mais cobra-coral. A gente está incrivelmente sozinho nosso mundo. Tenho os olhos hirtos, pedregulhos massageiam-me a barriga deslizante entre musgos e muros. Na hora do despedaçar da rosa, quando não flui o perfume. Amor já não adianta nada. Ou tudo.

Uma rosa azul desbotada.
De tanto verde-murcho, sentida.
Em canto de fadas, seringas.
Manto-véu desprende-se e encobre-lhe os seios.
Dança do vento suplica mímica em tessitura das cores.
Dor ao relento: maremoto.
Diga ao revolto: me movo.
Amarelo ocre de paisagens serenas, parcas.
Claves claras manhãs cavas.
Exíguas sugestões de colo pastando sob o sol de maio.
Rubras lembranças.
Boninas aventuranças.
Bonitas mãos dadas em sentinelas esguias, esbeltas, escoltadas pela paixão da vida-esperança.
Dádiva atingida.
Realçada em amarras de fitas sugeres os beijos de frente e de lado.
Violetas canções onde não se pregam dedos que encurralam’alma.
Receios, desmedidos, consentimentos surgidos surtindo efeitos em vidros.

Espalhadas uma a uma raízes e cruzes. Perplexo. Reafirmar esse amor em desuso, de desgaste e ressabio. Impotente E Atônito Diante À Imensidão Da Beleza. Em que repouso tranqüilidades biltres e amenas. Não se empresta amor, espalha-se. Qual pétalas que se entregam ao poder do invisível. Guiadas pelo vento, areia e vertigem. Não vou poder completá-la em todas as suas carências porque eu também sou Incompleto.

Uma rosa azul incompleta. Esvai do mundo. Vazia a tarde de quem ao jardim segue para encontrá-la. Pois ela agora se encontra em toda parte onde não haja o toque; a compreensão; a sede de vida. Morte é um revolto-relento sem chuvas. Cravada de espaços flutuantes em todas as interjeições suicidas. Inaudíveis. Dum silêncio que fatalmente não se possa ouvir, e acaricie em sua vastidão extrema-ausente.

Rosa azul desbotada. Tripartida. Suave rosário. Folhas verde-musgo. Caule lilás na terra. Esse desajeitado deselegante passar de mãos nos cabelos remexidos bucolicamente. Fruto de prosa caótica & poesia fragmentada a rosa tremula fresca. Somente a procissão e martírio de Venâncio e Curumba, capaz de provar o gosto da rosa, amarrada ao pé da cajarana.

Um diálogo meio espantado. Entre flores inacabadas. Repousam na superfície rasos vasos de plantas e insetos que remam nas águas intoxicadas pelo lodo. São eles os que prosseguem na natureza? Onde está a pequenina rosa roxa (que não se pode achar)?

A memória é tão traiçoeira
Que rouba-nos o que já não nos pertence
Quando se apaga em vela
Deixando réstias ininteligíveis

Na vitrola “Rosa do mar” de Capiba. A alegria não me diz nada, sequer sussurra. Esfuzia vazios vidros que tremem à luz colorida.

Harpas harpias
Internos alardes
Mar em desvio
Romarias pagãs
Rotas rotas
Calmaria sã
Saudades.

Embrulhadas pelo alumínio de uma rosa azul. Circunscrita. Entregue na necessidade de se eclodir. A flor que nasce sem licença. Parte da mesma maneira. Parte, quebra o caule, prega pequeninas peças. Incólume pregação. Surto? Sentido? Atarracado em meio aos limites de uma rosa azul.
Que se despedaçou.
E aqui, me deixou.
Mixo.

Sem compromisso.

Com a irretocável clareza de ruge que a natureza
Obriga a se disfarçar em maneiras,
Altaneiras,
Folhas de laranjeira,
Maquiagem além do Tom
(desfile de cores sem som).

Nos alpendres vejo A Noite Do Meu Bem de Dolores Duran
Nos compêndios toca a nona sinfonia sonata de Beethoven
Suga a doce Inquietação de Sivuca
A verdade que não consigo achar o Desejo.
Fugacidade; Inadequação; Sobrevida.
Escrevo de cima dessas rochas suspensas. Neblina nos meus ombros, com cabelos loiros encaracolando por todos os lados.
(Temas para um conto caipira chorado à voz e viola latejante de Rolando Boldrin).
Sopro. História Sobre O Vento.
Saltita fincando espinhos e afundando nuvens.
Rosa azul amarela lilás.
Flor de jambo palmeira do cais.
Incapturável, livre.
Transparente.
Não há palavras capazes de decifrá-la.
Vôo de pétalas...

Raphael Vidigal

Pintura: "O Violonista Azul", de Marc Chagall.


“Bem no centro da faísca, praça central do coração da chama, a porta de um reino sem durar:” Paulo Leminski


Tinha os olhos amarelos & xadrez. Uma anja preta. Gato a tira-colo. Colo atira gato. No céu de Olinda, ouvia Capiba. No chão de Pedreiras, João do Vale. Farpilhos desfarrapados cobriam a túnica que envolvia cabeça raspada, orelhas furadas e nuca desprotegida. Tudo doía. Nu exposto ao escrutínio.

Exaurida da casca transitória e rija dos gestos. Era um ovo, uma cobra de Tarsila. Verde-rosa. Sambava balé. A ralé ouriçava. Escrevia na tentativa íngreme de ser Maleável e Eterna como as Palavras. Mas escrever não derrama. Impreciso trabalho frágil.

Viu a escada para o inferno de Rimbaud, William Blake, cheiro de enxofre das flores do mal de Baudelaire. Desceu, desceu, desceu a escada encantada de magia e medo. E não havia nada para ser buscado. O pote de ouro explodiu-se em morcegos, faíscas coraram-lhe as faces transparentes, uma lança furou-lhe o umbigo. Mas não havia nada para ser buscado.

Papai e mamãe querem que você seja médica, advogada, engenheira? Querem que você abra corpos, tranque mentes-metais, faça contas dias madrugadas? Ah! Mas e esse caroço entre as veias e o estômago? E essa anatomia de anja preta pervertida a voar?

Os lagartos e lacaios do estado laico do Paraíso sem crença, murmuravam sob seus pés, enrolando-se em suas ancas, escusos e escorregadios, locomovendo-se em comum acordo ao tempo, ao vento, às cousas irrefutáveis, enxugando suores de náusea, rindo quanto necessário, um sorriso amarelo largo, que contrastava com o xadrez de seus olhos, de uma opacidade mórbida, mas viva além do batom & baba brilhante que enternecia o ambiente.

‘Tesoiras só são bem vindas desde que não cortem senão as unhas carcomidas’. Dizia o aviso. Mas as costuras (matéria: artesanato) nem grossas ou finas. Aqui é proibido pensar consigo próprio. Sensações químicas. Emoções somente físicas. Calcula-se e se engarrafa o preço todo. Preste atenção ao trânsito. Sejas preguiçoso, mas não presunçoso. Incômodo. Um alfinete pérola cerrou-lhe as orelhas dispersas. Não tinha sangue praquilo. Esquilo de gazela era o que precisava. Uma poção poderosa. Ademais não havia nada para ser buscado.

Gavetas e guarda-volumes se aglutinavam. Nenhum espaço para uma lágrima pequenina, própria, gota indevida. Vontade de não ligar pra ninguém. De sumir por um tempo. Olho de dentro. Se você está com medo do Buraco Do Enterro. Venha. Despeço. Despedaços. De. Papel. Crepôn. Sufocam-me os asnos, do saber marrom. À forra com teus bulhões! Afora teus grilhões. Lá fora semente e sabor. Sombras e vultos.

Um vulto. Pode-se ver uma sombra. Clara, luz, solar. Torna-se manta. Meninos sujos pelas ruas. Meu coração é um túmulo. Vejo na TV: Os computadores cada vez mais inteligentes quanto os seres humanos. Sugere-se o contrário: os seres humanos cada noite/dia mais inteligentes quanto os computadores. Seres rasteiros-computadores. Pessoas inteligentes-computadores. Computa dores? Adiante, não há nada para ser buscado!

Induzindo o pensamento por correntes marítimas, ondas sonoras de Raio X: o impossível é tachado. Mas a descoberta inócua da veracidade lhes faz bem ao fígado, tão mal aos cabelos que caem em protesto da cabeça desterrada, aquilo que dentro chamam cérebro. A semente-noz do esquilo laranja. Liberdade não é nossa. É a do outro. Liberdade nossa tem ranço autoritário. Lambeu uma página: “a liberdade não resolve a culpa.” Clarice Lispector. Permitir ao outro, sim, é liberdade! Nuvens de Vladimir Kush.

a coisa medíocre corresponde diretamente aos anseios dos homens... a extraordinária espanta, por vezes assusta, e há quem se admire agora me vejo diante da matéria viscosa do homem eu que nunca tive toque para o ordinário; Pintura Número 8, de Pollock.

Funciona-se em público. No banheiro público. Nu sujeito ralo. Ralando o queijo que se acumula. Aquele mesmo guardado. Infectado. Por isso mesmo sentem vergonha sexo – depravação dos sentidos. Pobres de espírito. Ricos de bolsas-calções. Universalizados dentro das faculdades pedidas-permitidas-aplaudidas-necessárias-ao-bom-prazer-o-trabalho-escravo-que-dignifica-o-homem-a-busca-pela-verdade-não-há-nada-para-ser-buscado-maltratado-violado-supra-seres-de-manias-induzidas-clandestinamente-se-frustram-boicotam-se-embora-com-os-coices-alinhados-e-os-sinais-de-alerta-sempre-ligados.

Perdem a leveza. Juntam papéis a peso de ouro. Carregam nas costas, alferes e medidas, mas peses? Hilda Hilst: Love apesar, a pesar e há pesar. Saltou sob as colinas expurgando sóis que lhe racharam a pele de Van Gogh. Afinal era uma cobra, ovo, anja preta. Abriu a casca, trocou de pele, soltou as asas. Que quando você leia essa vida antiga chore pela tua condição irrefutável-indelével. Charme. Vazia e cheia de insensibilidades. Balão de ar indefinido. Indefinidamente sopra bolhas de sabão. Para rumar? Ruminar? Donde? “Meu Deus, me dá cinco anos, me cura de ser grande...” Adélia Prado. Que não havia nada para ser buscado.

E mesmo as palavras já não eram delas, lascando grutas brutas em pedras. O vendaval de areia varria as que se agarravam em tentativa desesperada. Mesmo então, eternas. A fome imensa da terra nutriu-se de sua precariedade obsoleta confusa. E não havia NADA PARA SER BUSCADO.

Raphael Vidigal

Pintura: "Destino", de Salvador Dalí.

terça-feira, 1 de novembro de 2011


Às artes plásticas nunca coube papel de destaque na televisão brasileira, talvez porque a consolidação da segunda ocorreu justamente no período em que a primeira se marginalizou de vez, através do manifesto neo-concreto assinado por artistas que faziam uso de referências múltiplas (cosmopolitas e provincianas) como Hélio Oiticica, Lygia Clark e Amílcar de Castro, entre outros.

Qual seria então o lugar marcado para essas artes na atual programação da televisão brasileira? Primeiro é bom referir que as artes plásticas contemporâneas, principalmente a partir desse momento denominado neo-concretismo, nunca aceitaram demarcações definidas, e por isso é tão difícil a tratativa do assunto em um veículo que ao longo dos anos vem se notabilizando por facilitar a compreensão do espectador e oferecer respostas ágeis e práticas. Embora concretas, as novas artes plásticas nunca pretenderam a praticidade palpável e palatável, muito pelo contrário, preferindo em sua maioria o opaco que leva a um lugar de reflexão subjetivo, muitas vezes pautado no caráter físico para representação, mas não necessariamente para consumi-lo em sua esfera, e sim mantendo as portas abertas para a propagação do objeto impalpável, abstrato e lúdico.

Resta então aos canais que não ostentam a necessidade urgente de alavancar picos de audiência e girar a roda da economia que os rege e domina a alternativa para se apresentar programas sobre tema que pode gerar aspereza se comparado às telenovelas de fim de noite. Ou seja, esse tipo de programação encontra-se apenas à disposição dos privilegiados que podem bancar a televisão paga por assinatura, os multi-canais. Nenhuma emissora de canal aberto hoje no Brasil destina espaço para a discussão do assunto em sua extensa programação, muitas vezes ocupada por “cultura e arte” de valor duvidoso mesmo do ponto de vista popularesco. Por pretenderem à obtenção de renda pura e simples deveriam ser melhores classificados como projetos de ascensão social ou atividade econômica através das mídias.

No canal pago pertencente às associações Globo, o Globo News, temos uma interessante iniciativa nesse sentido, com o programa “Starte”, que faz uma brincadeira com a associação “estar arte”, apresentado pela escritora e atriz Bianca Ramoneda, que vai ao ar toda terça-feira ás 23:30h. O horário, como de costume dedicado às artes, é inglório, mas ainda assim é um árduo refúgio para quem pretende saber sobre artes em geral através da televisão.

Com um enquadramento e uma condução bastante formalizados, não é para quem está procurando experiências estéticas através da própria televisão, mas sim para os telespectadores dispostos a apreciarem uma arte, essa sim feita de modo nada convencional, que tem pouca ressonância nos meios comunicativos no país e se relega a uma esquiva elite intelectual pensamente ou dominante (seja economicamente ou por status políticos). O fato é que o cidadão comum, em geral, tem poucas chances de ter contato com essa arte, que mesmo distanciada pelas lentes da separação já é um ganho.

Os conteúdos abordados variam em certa proporcionalidade entre artistas contemporâneos e nomes importantes que já deixaram a cena. Recentemente foi mostrada uma matéria sobre Leonílson, que bordava e escrevia poemas em suas criações apresentadas em tela que abolia o quadro, muito frágeis de serem preservadas, dando a noção da delicadeza interior do artista. Através da entrevista com o curador da mostra em homenagem a Leonílson e dos depoimentos de amigos, também artistas plásticos, que conviveram com ele, conduzida sempre de maneira informal e descontraída, apesar do valor muitas vezes hermético atribuído a esse tipo de atividade por pessoas que são afastadas do contato próximo com as mesmas, obtêm-se um bom panorama da representatividade do homenageado nas artes.

Outros espaços são esparsamente palco do assunto na televisão brasileira, muitos deles em outro canal pertencente às associações Globo, que direciona a maioria de material pouco comercial que chega até ela para as telas do Canal Brasil, (esse sim com excelente programação, rica em estética e conteúdo, sempre buscando inovações). Em programas variados, como “Coisas pelas quais vale a pena viver”, do diretor Domingos Oliveira e sua esposa também atriz e diretora Priscila Rozenbaum, a arte plástica ainda é tratada com sensível presença, como também no “Sem Frescura” do ator acanalhado e genial Paulo César Peréio, que recebe sempre bons convidados, ainda se vê os estilhaços do brilho fugaz que a boa arte, seja plástica ou concreta, emprega à quem se dispõe a recebê-la.

Raphael Vidigal

Imagem: Obra do artista plástico Hélio Oiticica, homenagem ao amigo morto, o bandido 'Cara de Cavalo'.



Cazuza foi um dos mais importantes cantores e compositores da década de 80, tendo sido um dos principais personagens do rock nacional que se instalou definitivamente na música brasileira a partir dali. Em sua obra, a representação da homossexualidade não se deu de forma linear e única, pelo contrário, Cazuza tocou de diversas formas no assunto, a maioria das vezes nas entrelinhas e através de metáforas, como era seu estilo.

Além de ter se assumido bissexual publicamente, Cazuza foi um dos compositores mais importantes na música popular brasileira na abordagem do tema, por tê-la feito de tantas maneiras tão distintas em mais de 10 canções durante a breve carreira, de 1982 a 1990.

1- Por que a gente é assim? (1984)

Primeira música gravada por Cazuza com referência à homossexualidade, em 1984. A canção é de Cazuza, Ezequiel Neves e Roberto Frejat e enfrentou resistência dos companheiros de banda de Cazuza para ser gravada por conta dos versos que remetiam à homossexualidade.



2- Narciso (1984)

Em seu terceiro disco como vocalista do Barão Vermelho e no mesmo ano que gravara sua primeira canção com referência à homossexualidade, Cazuza também gravou a segunda, que contava uma história de amor mal resolvido e trazia os versos: “nós somos iguais na alma e no corpo”. A música é de Cazuza com Roberto Frejat.

3- Só as mães são felizes (1985)

Fora do grupo Barão Vermelho, em seu primeiro disco solo Cazuza resolveu fazer uma homenagem a todo tipo de comportamento considerado marginal, maldito, e compôs com Roberto Frejat a música “Só as mães são felizes”. A homossexualidade aparece como um desses tipos de comportamento, e é representada através de uma citação debochada a uma das grandes referências literárias de Cazuza, o poeta beatnik Allen Ginsberg, ativista das causas homossexuais nos Estados Unidos.



4- Culpa de Estimação (1987)

Em mais uma canção sua em parceria com Roberto Frejat, Cazuza discursa sobre a culpa cristã que adquiriu ao longo dos anos por ter, segundo ele, sempre estudado em escolas católicas. A partir desse contexto ele refere-se à sua bissexualidade utilizando-se de nomes bíblicos, Eva e Adão, ao dizer-se indeciso entre o amor de um homem ou uma mulher.

5- Quarta-feira (1987)

O disco “Só se for a dois”, de 1987, marca o ano em que Cazuza fala de forma mais escancarada em uma música sua sobre a homossexualidade. Mesmo já tendo dito diversas vezes em entrevistas ser bissexual, apenas em 1987 Cazuza cantou sua opção de forma definitiva em uma música, através dos contundentes versos: “eu ando apaixonado por cachorros e bichas (....) porque eles sabem que amar é abanar o rabo, lamber e dar a pata”. A música é uma parceria de Cazuza e Zé Luiz.



6- Heavy Love (1987)

Ainda em 1987, Cazuza voltava a fazer referência à homossexualidade de forma implícita, enigmática, com os versos da música que continham quase que uma idéia de rebeldia e transgressão associada à homossexualidade: “pro nosso amor descarado e virado o mundo lá fora não serve pra nada.” A música foi composta por ele em parceria com Roberto Frejat.

7- Guerra civil (1988)

No disco Ideologia, de 1988, Cazuza lançou sua primeira canção que fazia referência clara à homossexualidade feminina. Em parceria com Ritchie, “Guerra civil”, continha os fortes versos: “freiras lésbicas assassinas”, revelando mais uma vez o modo transgressor com que Cazuza tratava do tema.

8- O Tempo não pára (1989)

Em janeiro de 1989, Cazuza lançou a música que marcaria definitivamente sua carreira, “O Tempo não pára”, parceria dele com Arnaldo Brandão, falava entre outras coisas, de uma visão sobre a forma como a sociedade costumava tratar os homossexuais à época, com os famosos versos: “te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro, transformam um país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”.



9- Eu quero alguém (1989)

No mesmo ano de 1989, em seu último disco em vida, “Burguesia”, Cazuza lançou “Eu quero alguém”, música em parceria com Renato Rocket que fazia referência à bissexualidade através da idéia de vestimentas que tradicionalmente identificavam o masculino e o feminino, com os inicias versos: “eu quero alguém, que use calça ou saia”.

10- Como já dizia Djavan (Dois homens apaixonados) (1989)

Também em 1989, Cazuza utilizou-se do discurso de outro compositor para se referir à homossexualidade. Adotando a frase de Djavan no título e nos versos finais da música, Cazuza, como raramente aconteceu na sua obra, dessa vez foi claro em sua referência.

11- Preconceito (1989)

Cazuza também fez referência à homossexualidade assumindo o papel de intérprete, como quando em 1989 gravou a música “Preconceito”, de Fernando Lobo e Antônio Maria e que já fora sucesso na voz de Nora Ney na década de 50, já naquele momento a música era cultuada pelos homossexuais e Nora se tornou diva entre eles. Anos mais tarde, Cazuza a regravou novamente utilizando-se de seu discurso para provocar o sentido da homossexualidade.



12- Esse cara (1989)

Em entrevistas ao longo do anos de 1988 e 1989, Cazuza, que já era bissexual assumido, dizia querer explorar mais em suas músicas seu lado mais feminino. Ao gravar a canção “Esse cara”, de Caetano Veloso, em 1989, Cazuza colocava-se como mulher e expunha sua faceta mais delicada. A música vinha no disco duplo “Burguesia”, na sequência de “Preconceito” que já fora reveladora de traço homossexual na década de 50 e agora era regravada por Cazuza. A composição das músicas na sequência conceituava o sentido homossexual presente em ambas.

13- Jovem (1990)

Cazuza também tratou do tema da homossexualidade apenas como compositor. “Jovem” foi composta por ele em parceria com Arnaldo Brandão, e gravada pelo grupo Hanói Hanói em 1990. A música trazia a idéia de que a homossexualidade era perante os olhos de alguns uma coisa nova, transgressora, moderna, além disso, a expressão usada para designá-la na música é carregada de coloquialidade e deboche, através dos versos: “você tá muito avançado, seus amigos desconfiam que você é veado”.



14- Problema Moral (1984 ou 1985)

Sem data definida, a canção “Problema Moral”, de Cazuza, Roberto Frejat e Dé”, gravada originalmente por Paulette, perdeu-se no tempo, mas seus versos permaneceram resguardados. A música discursa sobre a história de um amigo que conquista a namorada do outro, e acaba se justificando com uma irônica referência à bissexualidade, além de trazer a idéia de que ainda era preciso disfarçá-la: “mulher de amigo meu, pra mim é homem, eu transo no breu”.

15- Quero ele (1989)

A canção “Quero ele”, foi feita especialmente por Cazuza e Lobão para o espetáculo teatral “Querelle”, estrelado em 1989 pela transformista Rogéria. A música conta a história do personagem principal da peça, o marinheiro homossexual Querelle, e faz referências também à quem o interpreta, em versos contundentes: “Quero Querelle e seu irmão, Quero Rogéria e seu pauzão”.



Raphael Vidigal

Parte de projeto experimental acadêmico realizado na PUC MINAS.

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