terça-feira, 19 de julho de 2011



Não espere arroubos sonoros. Zélia Duncan canta meiga, delicada, suave, suas composições novas. Isso é o que prepara o disco. Diante da platéia a contenção das interpretações se revela desafiadora e fugaz, com leve sorriso de coragem sorrateira.

A presença de Zélia no palco é resguardada de beleza, pelo vestido de Ronaldo Fraga (o coração do artista segundo a cantora), o cenário de Analu Prestes, pinturas abstratas refletidas pelas cores de uma iluminação climática, e a simpatia da protagonista, acompanhada de perto por Ézio Filho (direção musical e contrabaixo), Webster Santos (violão, bandolim e guitarra), Jadna Zimmerman (bateria, percussão e flauta) e Leo Brandão (teclados e acordeom).

À vontade desta, dissolve-se o desdém “pelo sabor do gesto”, título do álbum lançado em 2009 que alicerça show apresentado no último dia 10 de julho no Palácio das Artes, e que rende belo número onde a cantora posiciona-se com violão ao colo e interpretação intimista.

Ao abrir a apresentação com “Boas Razões”, versão de música do artista francês Alex Beaupain, Zélia assinala a que veio, embora ainda distante fisicamente do público, já esboça o vigor e a vontade com que irá conduzir a noite. A participação de Fernanda Takai nessa canção no disco é substituída pelos vocais do guitarrista da banda. Na sequência, emenda-se a solenidade a Rita Lee, de quem Zélia é eterna devota, com a pop roqueira “Ambição”.

Mas o circo aconchegante começa a pegar fogo a partir de “Intimidade”, música de Zélia e Christiaan Oyens que lembra os primórdios do Barão Vermelho (da época de Cazuza & Roberto Frejat), um bluesy cadenciado com letra ácida e humor farpado. A cantora esparsa em rigidez malemolente os gestos necessários ao destinatário da mensagem.

Aliás, um dos pontos altos do espetáculo é a condução sonora de Zélia Duncan, que se distingue por todo o corpo com intervenções precisas de interação bem humorada e suposição ligeira de pernas e braços, que logo se recolhem ao lugar de origem.

Na super-tocada “Tudo sobre você”, a nitidez dos versos se estende ao belo arranjo, inventivo e dinâmico, onde os instrumentos retomam lembranças de festas de aniversário infantis, artimanhas de John Ulhoa, co-autor da música, produtor do álbum e segundo Zélia Duncan, maior responsável pela existência do tudo em cena, ao respondê-la em e-mail sobre o projeto: ‘xá com nóis’, brincadeira diversas vezes direcionada à platéia.

A “Felicidade” de Luiz Tatit, embandeirada pelo autor paulista como o novo mal do século em lugar da depressão, escancara tom debochado sugerido pelo sobe e desce de sobrancelhas da cantora. O que lhe é complementado pelo sorriso de lado e os questionamentos sóbrios, quase falados: “Não sei por que tô tão feliz, preciso refletir um pouco e sair do barato.”



Nada mais lhe escapa, os espaços vazios preenchidos de felicidade argumentam sem precaução nenhuma a letra propositadamente rimada de Zeca Baleiro, ao denominar símbolos de desejos amorosos da geração descartável: do “tesouro dos czares” ao “céu de celulares”, esta uma imagem perfeita ao romantismo ajambrado.

“Se eu fosse um blues, te mandava embora, se eu fosse um samba, esperava a aurora”, refina melodia e letra em parceria de Dante Ozzetti, com construção incomum de sentidos determinados pela emoção da música: do choro à valsa, da fuga de Sebastian Bach à Nona Sinfonia de Beethoven, reproduzida alusivamente à citação do verso.

O fraseado reto de “Duas Namoradas” de Itamar Assumpção e Alice Ruiz, serve-se no samba deslocado de Zélia Duncan, garantindo a hibridez proposta: “Tenho duas namoradas, a música e a poesia, que ocupam minhas noites, que acabam com meus dias”. Também o “Cedotardar” de Moacyr Albuquerque e Tom Zé alcança sublime vôo na voz bem acolchoada e no arranjo dramático, com progressão paulatina ao intencional clímax em bolero: “no mais horroroso castigo....te sigo!”. A poesia é preservada em sua integridade.

“Borboleta”, gerida em comunhão por Marcelo Jeneci, Arnaldo Antunes, Alice Ruiz e Zélia é ligeira e pop, e justifica-se pelo complemento da cantora: ‘um bando de marmanjo fazendo música de criança’. Um dos grandes momentos acontece à explanação em língua de sinais de “Todos os Verbos”, dedicada à fã semi-auditiva que buscou Zélia. Na procura de se abrir a esse universo tão sonoro quanto, a artista emociona em singeleza e doçura.

Na interpretação do “Tom do Amor”, nascida da descoberta do ‘diálogo de uma mãe ensinando as coisas importantes da vida à filha’, tudo em torno aconchega sutilezas, levezas, descompromissos e descontrações. Zélia flutua jardins de cores amenas, que não chegam a ser infantis, nem convidam à melancolia. É um contato que se interrompe, e o intervalo entre o espesso gesso e a liquidez da tinta é que moldura o quadro particular da cantora. Gotas que pingam devolvendo gestos, canções, palavras, afetos esquecidos em ambiente que se tornou cheio e duro. A composição é dividida com Paulinho Moska.

Sem esconder as ironias, Zélia canta uma desconhecida de Roberto Carlos, “I Love You”, e outra dedicada aos corações esperançosos, “Por isso corro demais”. Já no final, “Flores”, de Fred Martins e Marcelo Diniz combina poesia e energia na medida incerta pretendida: “Flores para quê? Flores para quando tu chegares, flores para quando tu chorares, uma dinâmica botânica de cores.” E o visual recebe mesmo duas flores artesanais.

O bis recheado de sucessos, “Catedral”, versão para música de Tanita Tikaram, e “Alma”, de Pepeu Gomes e Arnaldo Antunes, ganha coro ‘afinado’ da platéia, segundo a própria cantora e motivação elevada, fechando em altos tons as sonoridades decifradas em luzidias miniaturas.

Zélia não está se poupando, não deixa de ser enfática, destemida, apenas descobriu outra maneira de encarar a vida: sorrindo ao invés de gritando. Não escondida, mas aparecendo para quem quer ouvi-la. Não há nesse gesto a passividade, mas o saboreio de uma comida muito mais palatável ao devaneio de nuvens que tempestades.



Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no Jornal "Hoje em Dia" em 12/07/2011.

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