O mundo de Almodóvar sempre esteve impregnado de cores, deboche e dramalhões mexicanos. Pelo menos o mundo cinematográfico, contrário à infância pobre que o diretor teve. Embora afirme que suas obras são sempre parte de sua vida, Almodóvar tem por mérito exagerar nos tons, e fazer disso seu grande diferencial. A arte maior de Almodóvar é exagerar com sutileza. E esse lhe é um talento inquestionável. Ao tratar de personagens complexos e quase sempre opostos, entrando em conflitos psicológicos e até mesmo físicos, Almodóvar tem por hábito utilizar cenários abundantes, que nos comovem através da associação de símbolos. Sim, tão comoventes quanto os personagens criados por Almodóvar são os cenários que ele utiliza, regados a seu tradicional vermelho sangue que também pode ser utilizado nos cabelos, nas roupas e no batom da personagem que dá nome à sua película de 1993, Kika.
Já na primeira cena do filme Almodóvar nos oferece uma cama onde deita-se uma modelo simulando um orgasmo. E na verdade, todos estão em pé: a modelo, a cama e o fotógrafo que a pede para relaxar enquanto a retrata para uma propaganda de lingerie. Tudo é falso, tudo é fantasia, e diferentemente do comercial que vai ao ar, no filme o espectador sabe que está sendo enganado.
O fotógrafo em questão será personagem importante no filme, pois servirá de base para dar vazão a uma gama de comportamentos: ele simboliza o voyeur solitário e introspectivo, apaixonado pela mãe e desejando a morte do padrasto. Além disso, é submisso à mulher, aceitando a traição com complacência. Nada mal para um Édipo dos dias atuais de Almodóvar.
Desde o início do filme, o renomado diretor espanhol confunde o espectador quanto ao olhar que assiste à cena. Nunca se tem certeza se é simplesmente o olhar de Almodóvar, do espectador ou dos voyeurs que cercam os acontecimentos, pois eles estão em toda parte, e o fotógrafo Ramón, interpretado por Álex Casanovas, não é o único do filme, Andrea Caracortada também tem o costume de espionar as pessoas, só que de um jeito um pouco menos discreto, um tanto quanto espalhafatoso, a julgar por seu modelito andrógino com desenhos de seios aparecendo. Sem se esquecer da câmera que ela carrega na cabeça. Se Ramón tem por hábito fotografar cenas de sexo, a predileção de Andrea é por crimes sanguinolentos. Ela representa a tão falada sociedade do espetáculo, apresentando um programa de viés sensacionalista que tem como patrocinador uma marca de leite. A personagem é interpreta pela atriz espanhola Victoria Abril, e suas axilas não depiladas aliadas ao corte que ela empunha com orgulho na cara dão a medida exata do charme da apresentadora e psicóloga aposentada.
Aliás, outra característica não menos presente nos filmes de Almodóvar é o deboche com que ele trata as ocupações humanas. Se a desvairada Andrea Caracortada é uma ex-psicóloga, o retrato dos policias não deixa de ser menos cômico. Quando eles recebem por telefone a notícia de que Kika está sendo estuprada, segue-se um diálogo memorável, em que um dos policias compara seu queixo ao de Kirk Douglas. Não menos interessante é o visual a la Wolverine de seu comparsa. Os dois agem segundo o estereótipo dos policiais bonachões que se garantem em sua autoridade, e não dão a mínima para a denúncia feita. Quando eles resolvem agir, entediados com o ambiente da delegacia e dispostos a darem um passeio, é que tem início uma das melhores cenas do filme.
Tudo começa no entanto, um pouco antes, quando a empregada lésbica da casa de Kika, Juana, interpretada por Rossy de Palma, musa de Almodóvar que já a comparou às pinturas de Picasso (e à qual refere-se à beleza em cena que Kika lhe diz: “em tempos de rostos estranhos como os de agora bem que poderia ser modelo”), abre a porta da residência para seu irmão, o ator pornô e foragido da justiça Paul Bazzo, interpretado por Santiago Lajusticia, e ele resolve não estuprar Kika. Ao contrário do que é levado a pensar o espectador quando a câmera o filma de baixo para cima por trás e vai subindo lentamente até parar em suas calças, enquanto se exibe de frente para uma Kika adormecida, ele não está mostrando-lhe o membro sexual, mas sim os músculos do tórax e braços, e isso só fica evidente quando a câmera sobe mais um pouco e o filma por inteiro, ainda de costas.
Nesse momento, ele aparentemente desiste de estuprar Kika e se retira do quarto, mas ao tentar inutilmente acordar sua irmã que o pediu que ele desse-lhe um soco na cara para não descobrirem que ela o deixou entrar e eles eram irmãos, ele acaba demovendo-se da aparente transformação e volta ao quarto para estuprar Kika. Excitando-a com um pedaço de mexerica, Paul rapidamente começa a estuprá-la ainda dormindo. Nesse instante, a câmera traz uma imagem que pode ser da janela, de algum observador não presente na cena e a certa distância. Podemos ser nós, os espectadores, ou o voyeur que insistentemente bisbilhota todas as cenas. Ou ainda, talvez sejam todos a mesma coisa.
Ao mesmo tempo em que nos mostra Paul estuprando Kika em cortes fechados, onde somente os dois são enquadrados e o diálogo entre eles é o essencial da cena, Almodóvar também nos dá a oportunidade de enxergar o ato em cenas abertas, focalizando por exemplo o altar construído por Ramón em cima da cama, com imagens de santas e mulheres nuas, em um mosaico que ilumina o interior do personagem.
Isso nos dá uma prova de que a grande conquista de Almodóvar não é realizar uma cena de estupro, mas sim tratá-la de acordo com suas características cinematográficas e sua sensibilidade. O descaso com que a personagem Kika encara seu algoz depois de vários minutos em que está sendo estuprada tem um quê de ironia, ousadia e cinismo do irriquieto diretor. Cada personagem da trama carrega consigo características diversas, que a exemplo do que o próprio Almodóvar nos diz, podem ser atribuídas à sua própria personalidade, pois se o cinema é parte da sua vida, temos um filme vivo, com contornos de dramalhão mexicano.
Em uma tomada que deveria ser dramática, trágica, violenta, Almodóvar nos brinda com seu bom humor para lidar com o lado mais sórdido e tosco do ser humano. O estuprador é tosco, Kika tem seus momentos em que é tosca, e a abordagem dos policias é tão tosca quanto rude e inesperada. E por isso mesmo, hilariante. Sem se importar com as pessoas que possam estar dentro da casa eles chegam atirando na porta, arrombam-na e então caminham pela residência com as armas em punho. Outro olhar bastante presente no filme é o do reflexo do espelho. Almodóvar o utiliza diversas vezes para dar luz às cenas, dando-nos indícios de que talvez estejamos vendo tudo pelo lado oposto, ao contrário.
Na cena que antecede a entrada dos policias na casa, Kika e Juana dialogam tranquilamente enquanto Paul estupra a protagonista. A câmera nos mostra o rosto completo de Kika, enquanto que o de Juana não é totalmente filmado. Enquanto Kika tem uma expressão de ansiedade, não sabemos com que cara Juana dialoga com a patroa, sabendo que tudo aquilo só acontece por culpa de uma atitude tomada por ela. A vergonha pode ser o motivo. E essa é a única dica que temos do sentimento da personagem, pois sua voz continua pausada e serena.
Como são todos voyeurs, ou seja, estão todos observando, os cortes de Almodóvar são sempre para mostrar outros olhares. Quando os policias caminham em direção ao quarto de Kika, quem os observa ao fundo é Juana, quando eles entram no quarto alguém os observa de longe, ou atrás da janela ou da tela do cinema, e quando Paul é finalmente tirado de cima da estuprada, o olhar que nos é oferecido é o de Andrea Caracortada, mesmo que seja ela a enquadrada na cena, o essencial não é a sua imagem, mas o seu olhar, para onde ela olha.
Apesar de ser uma cena de relativo suspense sobre o que os policias irão encontrar quando entrarem no quarto tudo acontece de maneira muito rápida, no mesmo ritmo frenético com que Paul tenta ejacular, entrecortando alguns momentos de relativa pausa, onde Kika faz observações à respeito de higiene pessoal e o tal voyeur da janela observa a cena de aceleração, mas estática. Todos os elementos que compõe a cena nos são oferecidos com cores, velocidade, e a atuação dos personagens é simplesmente patética, com destaque para o momento em que os policiais puxam o estuprador pelas calças arriadas até que ele literalmente se desgrude de seu objeto de prazer.
Outro elemento utilizado para cortar as cenas são objetos que descem pelas janelas do prédio segurados por cordas, e embaçam um pouco o visual das cenas, nos deixando ver somente parte do que está acontecendo, pois há sempre algo que nos esconde a realidade completa.
O ápice de toda essa cena acontece quando Paul Bazzo foge até a janela e se masturba até que finalmente ejacule, e a gota de seu momento de prazer cai justamente no rosto partido da repórter Andrea Caracortada, em um dos raros momentos em que ela parece mais humana e sorri como uma criança. No amor verdadeiro sêmen é lagrima.
Raphael Vidigal