segunda-feira, 27 de junho de 2011




O mote é samba. Mas o sotaque é de Calcanhotto. Em álbum recheado de dedicatórias, Adriana não presta homenagem. Isso porque recusa a nostalgia para apresentar salutares desvios nos quais ambienta suas composições, com coloquial destreza para o inusitado.

Um dos que recebe menção honrosa na contracapa do disco é Jards Macalé, outro iconoclasta da canção brasileira. Aliado a ele vem Lupicínio Rodrigues, chamado tão intimamente de “lupi” que merece registro a maneira descompromissada com que Adriana se enverga do “micróbio do samba” dito pelo inventor da dor-de-cotovelo para dar nome à 12ª obra de sua carreira fonográfica (exceção à coletânea “Essencial” lançada em 2010).

Acompanhada em todas as faixas por Alberto Continentino no contrabaixo e Domenico Lancellotti na bateria e percussão (por vezes invertendo a ordem – ou seja – percussiva bateria e batida percussivista), Adriana começa sua saga rumo ao ritmo surpreendendo, como lhe é de seu fetiche nada usual em tempos demasiado óbvios.

Quem procura o tal micróbio do samba precisará de refinada lupa para encontrá-lo. Sim, pois os instrumentos presentes no álbum são tão inesperados quanto usar uma lupa para encontrar micróbio. E soam, além de criativos, agradáveis, dispensando a invencionice barata de grupos indie saídos em última fornada. A se notar o fato de que o som base é comandado por instrumentos elétricos tão rechaçados em ‘tempos idos’ (diria Cartola), sob a pretensão de defesa das raízes analógicas aqui instauradas pela miséria do povo.

Não se exclui o novo para abrigar o antigo. A riqueza com que Adriana desperta os olhares, ouvidos e gestos de sua matéria-prima é notável. Adriana lida poesia. Retira de cada sonoridade e palavra tudo o que podem oferecer em largueza e amplitude. Os sentidos deitam-se abertos ao deleite individual. Na primeira faixa, “eu vivo a sorrir” (assim grafadas minúsculas todas as palavras do disco), há exemplos que se cruzam soltos, envoltos pela atmosfera típica do samba (fadado fado; acaso caso). O que passará desapercebido por aqueles comprometidos com as verdades estáticas de uma vida mais maleável do que se lhes apresenta. Sem fazer pouco caso, Adriana e um de seus comparsas riem ao final.

“aquele plano para me esquecer”, brinca com contrastes, novamente: seu plano para me esquecer, esqueça, vaticina. E comporta a beleza rítmica do samba, sob os toques de um piano velejado aos dedos irreverentes de Calcanhotto. O clima revanchista e rancoroso, presente na terceira faixa, enclausura com propriedade a guitarra vertiginosa tocada por Adriana. “pode se remoer”, expõe no título do que se trata. E ainda remodela palavras, mantendo a sonoridade e o sentido primordial, como no caso de ajuizar/ajoelhar substituídas uma pela outra em versos, de resto, idênticos.

“mais perfumado”, oferecida à Thaís Gulin, enaltece o amor incondicional que se sujeita a provações inaceitáveis para muitos. O homem que trai é temática comum no mundo do samba, a mulher que mais do que desconfia, sabe, é mérito da lavra de Adriana. A música conta ainda com a “luxuosa”, como destacada pela própria cantora no encarte, participação de Davi Moraes e sua viola morna, que inaugura o sentir buliçoso do álbum.



“beijo sem”, já lançada com sucesso por Marisa Monte, e oferecida para ela mesma, põe à prova o canto narrativo e lento de Calcanhotto, como a sombrear palavras e requerer sons. É também faixa mais expansiva e menos interiorizada que as anteriores, abrilhantando o mosaico (como a obra de Leonílson – “Puros e duros – Ouro de artista – Ilusões”).

“já reparô?” permanece no tom da mulher que se coloca em primeiro plano, e ao invés de lamentar, se vangloria e provoca: a sua nova namorada, querida, pode ser linda e safa, (...) porte de gazela, olho de leoa, ser muito versada e hábil com a língua, do tipo que domina idiomas, mas ela não samba...”. E frases de conotação determinista: “o amor é o hiperquântico, e eu devo lhe fazer falta numa dada hora”. A ironia se estabelece, sem fazer concessões. Rodrigo Amarante pontilha generosamente solos de guitarra.

Outra canção com título questionador “vai saber?”, lançada e oferecida para Mart’nália, marca o ponto do disco em que o samba se esgueira com mais focinho tradicional. A se reparar o fato de Adriana tocar cuíca nessa faixa e caixa de fósforos na seguinte, “vem ver”. Numa, o rejeitado que sente raiva e ameaça o troco, noutra, o mesmo personagem, com a promessa de fazer de tudo para reconquistar o tal amor (perdido ou encontrado).

O chorístico cavaquinho de Davi Moraes, introduz a seara carnavalesca iniciada com “tão chic”, onde a sutil pronúncia de Adriana tem papel fundamental para a percepção da diferença em versos “si” e “se”. Nessa música, um exercício de cinismo com a eternidade, do “amor eterno até a quarta-feira”, sinalizando tom debochado com relação à festa. Na seguinte, “deixa, gueixa”, uma alegria exaltante em ritmo de bandeja de chá tocada por Adriana, em alusão ao objeto referido na letra. Com sagacidade, a faixa ganha coro de bloco e torna mais intimista a música, que vai do Ocidente ao Leme, dedicada para Hiromi.

No fim, “você disse não lembrar” é sensível composição bem aclimatada ao tempero tradicional do samba, enriquecida por toques de faca e prato de Moreno Veloso, que traça um caso de amor quase desfeito. “tá na minha hora” sinaliza o intento da autora dos versos, como síntese do trabalho feito: “despi as suas fantasias devagarinho, da sua onipotência tratei com jeitinho, e das chegadas de madrugada, no sapatinho, agora tá na minha hora...”.

E despede-se, erguendo a bandeira de sua Estação Primeira de Mangueira, inspiração para as cores que se destacam na belíssima capa do disco, via arte de Luiz Zerbini, Fernanda Villa-Lobos e Caroline Bittencourt. A “moça dos agudos de cristal”, que despertou o fascínio do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu em 1989, segue sua sina quebradiça de pérolas e diamantes. Com caminho livre para os rubis, em meio às pedras.



Raphael Vidigal

quarta-feira, 15 de junho de 2011



Há um fato não desvelado sobre recente obra do autor mineiro Luiz Ruffato. Na verdade, dentre muitos, há um que me salta especificamente aos olhos, aparentemente de relevância questionável. É possível que isso nem tenha passado pela cabeça do autor, mas o seu protagonista guarda outra interseção com a realidade além de também ter nascido em Cataguases. Sérgio de Souza Sampaio, o Serginho, é homônimo de primeiro e último nomes do compositor esquecido que estourou com o hit “Eu quero é botar meu bloco na rua”, e depois desapareceu no olhar obscurecido do grande público.



Sérgio Sampaio, o fictício, empresta seu pequeno relato através da pena ágil de Ruffato para dar vazão a uma realidade ampla e aberta que se revela pelas pequenas considerações feitas através de discurso casual, ingênuo, quase discreto, misturando assuntos a outros num ritmo acelerado, mas de natureza contida, se limitando aparentemente a abarcar a pequena condição de um jovem desempregado que vê a vida desmoronar por problemas comuns do cotidiano, nada de grandes questões reflexivas sobre a filosofia humana, “apenas” a perda do emprego e a “idéia fraca” da companheira que ele engravidou por “acaso”.

Aliás, um dos trunfos da narrativa de Luiz Ruffato é apresentar questões complexas sob a cortina da casualidade e do emaranhado de circunstâncias em que as pessoas se envolvem sem tomarem consciência da proporção exata que ela adquire. O compositor Sérgio Sampaio também usava dessa artimanha, misturando sua narrativa pessoal com fatos cosmopolitas e provincianos, como, por exemplar, ao declarar o sentimento que o envolveu, na música Muito Além do Jardim: “nosso amor morreu tão cedo...durou o tempo exato da agonia do Tancredo.” Se valendo da realidade explícita e escancarada e de idéias que estão além do campo da objetividade, muito além do jardim.

Pois a história que Ruffato propõe vai muito além da distância entre Cataguases e Lisboa que Serginho tem que percorrer para fazer seu caminho. Na verdade essa travessia dá-se através de linguagem e do emprego de observações peculiares sobre um universo íntimo que depõe contra questões universalistas. Todo o tempo a grande preocupação de Serginho é se inserir em uma sociedade onde ele desempenhe papel de destaque, sendo reconhecido por seus feitos ou ainda pela simples aparência deles. E aí está a grande chave do mistério: a “aparenciabilidade.”

Para Cleópatra não é necessário ser honesta, basta parecer honesta, diria o outro filósofo desconstrutor para construir essa nova visão que detém a pós-modernidade, cheia de desreferencializações por conta de suas múltiplas referências, instaurada num ciclo de consumo que subjetiva a ela própria e oferece a total liberdade para ser incoerente. A fragmentação dessa nova era cheia de pólos para se agarrar e camadas flexíveis, aparece representada na narrativa de Ruffato que se descola sem considerações solenes de uma visita a uma prostituta apaixonante ao histórico de guerra do velho que recebe visitas pornográficas, sendo o cunho sexual irrelevante no link. À essa maneira, ele aborda questões relativas à nossa sociedade: a competição mercadológica e principalmente o que as pessoas precisam fazer para supostamente “vencer” nesse meio, o preconceito com o diferente que acaba se equiparando à massa para sobreviver, as dificuldades de relacionamento e os desvios emocionais que se incutem nesse processo.



Outra celebridade desconhecida e exótica da cidade de Cataguases é a cantora masculinizada e perseguida por seu estereótipo híbrido pela ditadura, Maria Alcina. Ainda na década de 60, ela se notabilizou pelas largas fantasias e pelo linguajar de superfície chulo, mas de essencialidade rica, ao resgatar do folclore nordestino toda a malícia reprimida do povo brasileiro naqueles tempos, com verdadeiras pérolas do quilate de “Bacurinha” e “Prenda o Tadeu”. É por essas fantasias, palavras grifadas que podem arrefecer os sentidos como sendo de significação baixa que Serginho vai aos poucos se enraizando na pátria que nunca foi dele, substituindo os cacoetes antes presentes em sua interiorana e pacata Cataguases pela agressividade com a qual tem que se confrontar em Lisboa. Ali é o estrangeiro que precisa se inteirar do código para ser aceito. Algumas dificuldades vividas fazem parte, de certo modo, da própria biografia do autor, obrigado a dormir e tomar banho em rodoviária, ser pipoqueiro, balconista e torneiro mecânico, dentre outras profissões, antes de se consolidar como jornalista e escritor de sucesso no Brasil e na Europa (traduzido para várias línguas: italiano, francês, espanhol).

Logo na abertura do livro, Ruffato faz uma brincadeira que “parece” séria. Inventa a naturalidade da história ao prescrever que aquilo é relato “minimamente editado” ocorrido em tais lugares, a tal dia e hora. Tudo se passa de forçar a imaginação a ser oferecida “à vontade”, escancarada em sua falsificação quando comparada com uma pretensa veracidade que é propositalmente exagerada. Trata-se de questionar o jogo da representação e apontar essa crise oriunda do esgotamento dos temas. O fim da originalidade e da criação. Ou seja, não há como representar uma realidade que a princípio se propõe sem amarras e totalmente solta em sua pós-modernidade, instaurada, entre outras coisas, pelo fim dos meta-discursos coercitivos e assegurados.

Outro artista pródigo em exaltar essa crise foi o surrealista e catalão Miró, vizinho da Lisboa onde desembarca o personagem de Ruffato, que através de suas curvas coloridas precedidas por telas quase totalmente brancas ou queimadas, entremeava vários discursos dissonantes e amplificados, que poderiam formar afinal, uma unidade indivisível, mas ainda assim, fragmentada. O autor também entremeia várias histórias com cortes bruscos, dando o paladar da oralidade na fala.

Encomendado pela Companhia das Letras para fazer parte da coleção Amores Expressos, que pretendia relatar o amor itinerante através das narrativas de diferentes autores por várias cidades, Ruffato solicita ao leitor a percepção de um amor implícito que se esquiva do contato, que é o não direto, o não alcançado, não terminado, e, portanto, aberto a possibilidades. O fim não conclusivo que define uma única decisão do protagonista, a de voltar ao vício que ele abandonara no inicio do livro, deixa no ar uma fumaça reflexiva sobre os caminhos da linguagem e a sua impregnação quase que obsoleta ao imagético, lembrando um pouco uma música do antecessor bossa-novista Lúcio Alves, também de Cataguases, que cantava: “de conversa em conversa você vai arranjando um meio de brigar, de palavra em palavra você está querendo é nos separar”.

As palavras de Luiz Ruffato têm mais o sabor da interrupção fragmentada que alcança o olhar do outro lado, que da continuação que se conforma e se consome em sua esfera limitadora. A Cataguases de Serginho não é a destinação à Lisboa. É a imagética necessidade desanuviada da pós-modernidade.



Raphael Vidigal Aroeira

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