sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012


“Flor de cactos – A flor de cactos é suculenta, às vezes grande, cheirosa e de cor brilhante: vermelha, amarela e branca. É a vingança sumarenta que ela faz para a planta desértica: é o esplendor nascendo da esterilidade despótica.” Clarice Lispector


Cesto trançado por Baco. Flâmula fleuma a perscrutar narinas dispostas. Preguiçoso Deus Romano da Orgia, da Ebriedade, do Sexo, dos Excessos, das Uvas! Sim, das Uvas. Arrulhando sob pés descalços e cantarolantes. Inventar palavra, pode?

Falar que Baco é o Deus casto das Uvas, pode? Onde já se viu falar que Baco é o Deus do Vinho?

Antes do Vinho há a Uva, ébrios raros. Na origem está a maledicência descoberta: Uvas. A beleza de chupar Uvas maduras. Puras. Não modificadas pelo homem. Porque o Vinho é prazer Terreno, a Uva é prazer dos Céus. Genuína bola de gude leve, gostosa.

Veio-me encarar redonda, arroxeada, na transparência fugaz do que vive sem o homem. Mas o homem não a vive sem. De repente, uma aranha. Mesmo diante da morte, não parou de comer. Absorver. Sorver o caldo derramado.

Lambuzou-se como um Baco, gordo e deselegante, entragando-se à gosma suculenta que usurpa da casca violeta o gosto venenoso. A um palmo da face, a aranha, teia em linhos, vento nas polpas da fruta. Nem dissimulou o desespero, relutância ou desistência, totalmente entregue ao prazer de chupar Uvas maduras.

No berço bebê que chora pelo leite materno, amado peito à espera do beiço pronto a sugá-lo sem erro. Na cova, adulto que urra pelo suco da fruta, amada casca de sabedoria interna alimenta a boca sem dentes.

Meticulosamente, espreme o líquido espesso, ao mesmo tempo moroso e passageiro goela adentro, abaixo, ao leito. Trevas acumuladas em copos, lixos e guardanapos, as renegadas cascas coram na dispensa supressora. Há quem as engula também, babando, comprimindo os pedaços grudados ao líquido compacto.

Mas ele não. É por demais audacioso. E no entanto ingênuo. Engolir Uvas maduras ao labor da pretensa. E eis que aquela aranha, ensebada em caixas inúteis, o observa agora. Dócil, faminto. Devorando com as vísceras e vicissitudes o Alaúde de Baco. Estraçalham-se em sua boca. Em festim roxo e fluido lilás. Rouxinol na Alvorada.

Fiapo. Sonâmbula. Desmaia pelo caldo escorrido, lânguido. Sonsa. A Uva no papo de pelicano singra, sangra, sortida. Escamas caem. Enrolada numa toalha. Nua. Antes de ser doido, eu já era talentoso. Antes de ser ateu, eu já era religioso.

Comecei hoje a chupar Uvas maduras, e por conseguinte aceitei um emprego. Devo escrever textos. Burocráticos. Televisivos. Vendáveis. Esse processo todo técnico é o que mais me amola. O Texto, essência, detenho, descarto, jogo fora, pego outro com a maior facilidade.

Se não tens talento, investe no esforço. Comigo é o contrário. Enviei relatório ao chefe, ciente de meus honorários, horários, honras. ‘Gostei de escrever sobre carros. Mas se pudesse me presentear com temas “menos duros”, como “tatuagem masculina”, “raças de cachorros pequenos”, “cortes masculinos para cabelos crespos”, sei que ficou ambíguo, agradeço. Acho que teria até melhor desempenho. É o que domino mais amplamente. Mas não farei de rogado, temas mais inflexíveis também aceito, acato, ordenho. Mais algum texto para hoje?’

- Escreva sobre Uvas maduras, responde.

Raphael Vidigal

Pintura: "Baco", de Caravaggio.

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