Yamandu Costa: as cordas lhe desobedecem. Incautas, prontas a insolentes provocações, por incitação tutorial. Seus doze dedos se transformam em treze, quatorze, infinitamente. Amarram-se aos trilhos do violão, descarrilados em seqüência.
À deriva, no suntuoso Grande Teatro do Palácio das Artes, na última quarta-feira, o gaúcho iniciou sua expedição com bela homenagem a Raphael Rabello, um mito da arte de trovejar violões, içando as caravelas de “Samba pro Rafa”, em magistral partida.
“Nas ondas verdes do mar”, suspirou Caymmi de cadente saudade à “Mafuá”, obra de Armandinho Gomes, que dá nome ao disco. Insurgindo em intervenção divina, arriscou-se a contrariar os donos do tempo, e espalhar os raios púrpuros do seu “Choro Loco”.
Se “os piores atos são feitos para o bem, e esse é um costume do amor”, como escreve seu conterrâneo Fabrício Carpinejar, “Elodie” despeja emoções lavadas pela espuma que declina na distância. Feita em homenagem à mulher, à espera num porto distante da França, soa revigorando os perigos da ausência, e a fortaleza de pedras do amor.
Disposto a desbravar inóspitas regiões de seu instrumento, Yamandu se aventura, monta um cavalo baio, dedica o canto à avó, entoa toda a “mística de Sarará”, em suas próprias palavras. Matuto de berço, recolhido as flores alvas do jardim de sua infância sulista, tenta acalmar o coração do filho em prantos. Em vão, somente lega a suavidade de “Bem Vindo” à platéia. Dentro ao mar em dias de ressaca, que impressiona e chantageia.
Como os ancestrais venham a lhe suprir a bússola que determina águas bravias, Baden Powell surge imponente em sua estratégia de arrastar correntes e lapidar o chão do navio, com pés que batem e se desprendem, na execução afiada de “Sambeco”. Para que o cabaré se arme e os tripulantes dancem, Yamandu chacoalha a “Suíte Colombiana No. 2 – Porro”, do capitão latino-americano Gentil Montaña.
Alardeada a presença de “Ana Terra”, personagem do romance do também gaúcho Érico Veríssimo, o violonista deixa com que o vento sugira a sensação de vozes amanhecidas, e triunfe o coro de anjos no céu suspenso.
Ao toque final dos sinos que anunciam a noite, o anfitrião, na posse dos aposentos sem cerimonial, convida o encantador das Minas Gerais, Marcelo Jiran, que surge com sua flauta prateada e acompanha as divercionices (invencionices e diversões) com o seu “Choro Classudo.” Os aplausos encobrem o marinheiro, e paira sobre o deleite a poesia “rimbaudiana” liberta em mar de trôpegos sons. Yamandu toca de olhos fechados. Decifra o enigma, Tom Zé: está “iluminando pra poder cegar.”
Raphael Vidigal