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Abraços,
Raphael Vidigal
“Flor de cactos – A flor de cactos é suculenta, às vezes grande, cheirosa e de cor brilhante: vermelha, amarela e branca. É a vingança sumarenta que ela faz para a planta desértica: é o esplendor nascendo da esterilidade despótica.” Clarice Lispector
Cesto trançado por Baco. Flâmula fleuma a perscrutar narinas dispostas. Preguiçoso Deus Romano da Orgia, da Ebriedade, do Sexo, dos Excessos, das Uvas! Sim, das Uvas. Arrulhando sob pés descalços e cantarolantes. Inventar palavra, pode?
Falar que Baco é o Deus casto das Uvas, pode? Onde já se viu falar que Baco é o Deus do Vinho?
Antes do Vinho há a Uva, ébrios raros. Na origem está a maledicência descoberta: Uvas. A beleza de chupar Uvas maduras. Puras. Não modificadas pelo homem. Porque o Vinho é prazer Terreno, a Uva é prazer dos Céus. Genuína bola de gude leve, gostosa.
Veio-me encarar redonda, arroxeada, na transparência fugaz do que vive sem o homem. Mas o homem não a vive sem. De repente, uma aranha. Mesmo diante da morte, não parou de comer. Absorver. Sorver o caldo derramado.
Lambuzou-se como um Baco, gordo e deselegante, entragando-se à gosma suculenta que usurpa da casca violeta o gosto venenoso. A um palmo da face, a aranha, teia em linhos, vento nas polpas da fruta. Nem dissimulou o desespero, relutância ou desistência, totalmente entregue ao prazer de chupar Uvas maduras.
No berço bebê que chora pelo leite materno, amado peito à espera do beiço pronto a sugá-lo sem erro. Na cova, adulto que urra pelo suco da fruta, amada casca de sabedoria interna alimenta a boca sem dentes.
Meticulosamente, espreme o líquido espesso, ao mesmo tempo moroso e passageiro goela adentro, abaixo, ao leito. Trevas acumuladas em copos, lixos e guardanapos, as renegadas cascas coram na dispensa supressora. Há quem as engula também, babando, comprimindo os pedaços grudados ao líquido compacto.
Mas ele não. É por demais audacioso. E no entanto ingênuo. Engolir Uvas maduras ao labor da pretensa. E eis que aquela aranha, ensebada em caixas inúteis, o observa agora. Dócil, faminto. Devorando com as vísceras e vicissitudes o Alaúde de Baco. Estraçalham-se em sua boca. Em festim roxo e fluido lilás. Rouxinol na Alvorada.
Fiapo. Sonâmbula. Desmaia pelo caldo escorrido, lânguido. Sonsa. A Uva no papo de pelicano singra, sangra, sortida. Escamas caem. Enrolada numa toalha. Nua. Antes de ser doido, eu já era talentoso. Antes de ser ateu, eu já era religioso.
Comecei hoje a chupar Uvas maduras, e por conseguinte aceitei um emprego. Devo escrever textos. Burocráticos. Televisivos. Vendáveis. Esse processo todo técnico é o que mais me amola. O Texto, essência, detenho, descarto, jogo fora, pego outro com a maior facilidade.
Se não tens talento, investe no esforço. Comigo é o contrário. Enviei relatório ao chefe, ciente de meus honorários, horários, honras. ‘Gostei de escrever sobre carros. Mas se pudesse me presentear com temas “menos duros”, como “tatuagem masculina”, “raças de cachorros pequenos”, “cortes masculinos para cabelos crespos”, sei que ficou ambíguo, agradeço. Acho que teria até melhor desempenho. É o que domino mais amplamente. Mas não farei de rogado, temas mais inflexíveis também aceito, acato, ordenho. Mais algum texto para hoje?’
- Escreva sobre Uvas maduras, responde.
Raphael Vidigal
Pintura: "Baco", de Caravaggio.
“Dorme, só existe o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce.” Caio Fernando Abreu
Essas histórias que nunca sei como começar. Encontrei três cegas na rua. Elas me reconheceram. Eu não as vi direito. Disseram terem sentido presença minha em tempos remotos, dispersos, mortos mesmo.
Perdidas, uma belisca a bunda da outra em sinal de alegria. Raiou uma luz nos olhos das três ceguinhas. Velhas, apoiando os cotovelos onde a dor sussurrou misto de saudade com lembranças amenas, começaram a perguntar covardemente.
Não me preparara para tal assalto de questões e dúvidas perenes em vidas tão desgastadas pelo tempo. Ainda queriam saber para onde iam, donde vieram, o que estavam fazendo nessa terra sem alentos nem boca suficiente para todas as fomes divinas. “É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno”, diz uma das velhas, citando Clarice.
E eu não entendi o que queriam dizer e provavelmente nem elas. Porque também não soube dar a direção correta, indicar a seta, o caminho de Alice que se desmancha ao sabor ferino do gato que de espreguiçar tanto na árvore dela ornou sua seresta. Ou o sorriso de Gal no céu de azeviches imitando Grande Otelo, Carmen Miranda, Betty Faria.
Pra quê tudo isto? A música velha me disse. É que a Arte não tem pra quê, não tem disso, somente existe. Confortei as três velhas cegas levando-as pelos braços, sol quente de meio dia, bicicletas, algodões-doce, carrosséis (nessa hora lembrei-me de Mafalda, ‘estes não existiriam quando as pessoas descobrissem que a Terra gira’), pirulitos em fôrma de coração, arremessos, gôndolas, giros, gritos.
Três velhas cegas perdidas. Estas só queriam voltar ao jardim de infância da antigamente.
O que me lembrou na volta para a casa, Tobias. Pequeno, desprotegido, manco. Não era cego, mas pra um cachorro a deficiência da perna é tão complicada quanto. Poucos sabem que os cachorros se movimentam primeiro pelos olhos, e olham antes de tudo através das patas.
Afofam o solo em que pisam não à toa, nem por acaso. Tudo planejado, elaborado, de caso pensado. Mentes dispersas e em ebulição constante, subornando o carinho do dono com suas travessuras diletantes.
Muita gente pensa que o gato é que tem pose. Aquilo sim é que é pose, a do cachorro! Aflito, intuitivo, ofegante, ele não pensa em outra coisa senão atrair a atenção do moço que os outros chamam de dono. Para ele, é triunfo, solidariedade, companhia de um com o outro, sem interesses complicadores.
O gato. O gato não. Mero preguiçoso. Caprichoso em sua tentativa de ignorar o mundo. Mas vamos falar de Tobias, o cachorro. Mancava ainda bebê, com imensa dificuldade para acompanhar o ritmo dos outros cachorrinhos. Inclusive de seu irmão gêmeo, alto, vistoso, livre de qualquer defeito na perna ou nos ombros.
O peso grave que Tobias carregou nos ombros, transformou-se num pino grosso, insurgido dentro do corpo pequeno daquele cachorro, como quem toma de assalto uma casa que não é sua, a doença que invade o sangue puro, agora contaminado. Infeliz conjectura do destino determinou que os ossos frágeis do valente Tobias expulsassem a todo momento o invasor de vidro. Silencioso, maquiavélico, suscetível, o vaso se quebrou um dia. Choramos todos a partida de Tobias.
Mãe rezando, mãe rezando dia e noite, noite e dia. Houve uma cerimônia na minha vida, da qual nunca me esqueci. Eu que sempre fora materialista, ateu convicto, distante de questões do espírito, guardei aquele episódio no escuro de meus ‘dentros’, citando o poeta sergipano por excelência e escolha consentida, Araripe Coutinho.
Depois de muito penar para chegar ao endereço do aniversário, pois as ruas não batiam com os números e os números não coincidiam com os bairros, chegamos à promessa infinda. Eu e minha namorada, sentamo-nos lado a lado, comemos, rimos, cumprimentos o aniversariante, e todos, absolutamente todos, sem exceção de velhas, cachorros ou leigos, assombraram-se com a presença duma senhora ao mesmo tempo viril e meiga.
Carregada de batom nos lábios, tiras nos cabelos, mãos calejadas e torturadas pelo suor, lembrava as três velhas cegas que eu conhecera alguns dias antes. Manca, lembrava o jeito acelerado tropeçando na vida do cachorro Tobias.
Começou a disparar as palavras que se enovelavam como num balaio de gato, em uma confusão cada vez mais saltitante, olhos marejados, preces para o alto, percebemos tarde se tratar de uma reza para agradecer ao Deus mais um aniversário do filho que juntos, haviam gerado.
Logo depois houve a algazarra, bolo partindo, dedicatórias, balões estourando, choro de criança na sala ao lado. Mas o que ficou nos meus ‘dentros’, foi a velha mulher rezando, misto de cachorro e cegueira.
Eu que nunca sei começar histórias divertidas para dormirem (crianças).
Raphael Vidigal
Pintura: "Retrato de Wally", de Egon Schiele.