quinta-feira, 14 de abril de 2011



Quando Elis Regina visitou Rita Lee na cadeia, grávida e presa por porte de maconha, o gênero considerado movimento por alguns, tropicalista, moveu acorde importante na história da música brasileira.

Anos antes, no meio da década de 60, Elis havia liderado passeata da classe dominante artística (laureada MPB pela crítica especializada) contra a guitarra elétrica. Um dos convidados mais ilustres do protesto era o ainda nem tão doce bárbaro, Gilberto Gil.



O músico baiano tocaria uma semana depois ao lado daqueles dois meninos e uma menina que representavam para Elis a degradação da cultura nacional em decorrência da invasão estrangeira (decantada por Noel Rosa em 1933, “o cinema falado é o grande culpado da transformação...”).

Elis Regina não era doce de coco qual Jacob do Bandolim, outro que combatia a iconoclastia simbolizada para ele no “delicado” de Waldir Azevedo, mas virou “doce de pimenta” de Rita Lee, personagem que rege o fio condutor do documentário afetivo dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, fã do inventor de uma das mais expressivas bandas do rock brasileiro: Os Mutantes.



LÓKI, a vida de Arnaldo Baptista, inicia-se pintando uma tela branca, ausência permanente que aos poucos ganha contornos coloridos. Rita está sempre presente, embora não preste depoimento. É ela a menina de olhos claros que vira o outro amor, “a transmutação do amor”, nas palavras do homenageado.

A relação dos sentimentos se destaca na condução da cinebiografia de Arnaldo Baptista, imprimindo marca de que toda sua obra está espessamente ligada à conflituosa travessia humana que ele percorre. O artista é sua arte. É essa a constatação do diretor, e, portanto, aspectos teóricos e técnicos são menos importantes de serem exprimidos nessa primeira produção cinematográfica do “Canal Brasil”. Tudo aparece nítido na conturbada vida pessoal de Arnaldo, tentativa de suicídio e internações.



As experiências do amor e das drogas acabam gerando uma espécie de loucura entendida pelas vozes uníssonas que proclamam Arnaldo como um gênio incompreendido em sua dimensão, ao extrapolar as barreiras da percepção territorial e “lúcida”. Questiona seu irmão e ex-companheiro de banda, Sérgio Dias: “Quem é louco? A gente ou Van Gogh?”. E o que parece é que Arnaldo sempre ultrapassa limites, primeiro ao incorporar a essência tropicalista (acusada por Jards Macalé de ter sido cooptada pela indústria e assim perdido o sentido) e dar cara ao rock brasileiro, depois ao ser reconhecido fora de seu país (por nomes como Kurt Cobain e Sean Lennon), e tangendo todo esse comportamento agressivo, ao absorver uma atmosfera essencialmente sensível e fragilizada diante dos acontecimentos humanos.



Explica Zélia Duncan, escolhida para substituir Rita Lee na formação contemporânea dos Mutantes (no coração de Arnaldo, a escolhida é outra): “não adianta ele ser reconhecido se ele não sentir esse reconhecimento”. E é sentir que Arnaldo parece buscar o tempo todo, seja via antropofagia (segundo Lobão “nome pernóstico para reproduzir a Semana de Arte Moderna de 22”), ou via regurgitofagia (expressão cunhada por Michel Melamed), ao expelir as entranhas sentimentais que lhe causam aflição.
As performances de Arnaldo, que sempre foram fruto de uma mente questionadora e um coração sem resposta, guiadas por espírito irônico e literalmente alucinado (o ácido é debatido sem definições morais), são esteticamente produzidas na tela em cor amena, bastante percorrida por romances menos sofisticados. O modelo adotado conserva uma materialidade menos complexa de ser digerida, com poucos contornos que não beirem de fato uma linha.



O que não faz jus ao histórico estético de Arnaldo Baptista, que ao incorporar novos elementos a um rock tipicamente nacional, explorou com extravagância as mais diversas cores que nossa aquarela nem tão brasileira assim podia despejar. O quadro que ele pinta durante o documentário é prova disso. A prova mais cabal de todas é sua música, que ao longo da peça embala as mais exóticas faces de Arnaldo (mímico, retórico, melancólico, infantil), nem sempre obedecendo a aspectos cronológicos, mas pontuando a vida de um artista resgatado de sua profundeza em corpo e alma. É a balada do louco: Arnaldo Baptista ressurge, e pode voar.



Raphael Vidigal

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