sexta-feira, 15 de abril de 2011




As águas de Itapemirim deram ao mundo um Rei e um fora da lei. Um médico e um monstro. Cachoeiro, no masculino, maturou a seleção natural entre aquele que seria quase unânime em agasalhar corações maternos e o que exacerbava feminilidade na postura prática. Pernas cruzadas, cabelos longos e negros como lágrimas ou labirintos, boca embicada à espera de um batom corrosivo vermelho que pintava seu nome nos encartes dos discos: Sérgio Sampaio. O outro prescinde apresentação, Roberto Carlos.



Sob a égide do Espírito Santo, ambos nasceram regidos por Marte, o elemento fogo e o signo de Áries, nas datas de abril cujo simbólico animal é o carneiro. Mas o misticismo esteve longe de enclausurá-los, embora presente, e se fizeram lobo em pele de variados gêneros. O rock foi a matiz inicial. Enquanto Roberto empunhou sua guitarra italiana, carros explosivos e mil e uma namoradas, Sérgio foi pela trilha provocadora a que um amigo baiano o apresentou, com sessões das dez num cinema espinafrado. Raul Seixas conduziu Sampaio. O irmão de sobrenome, Erasmo, foi o grande comparsa do amigo Carlos.



Sérgio caminhou deslocado. O assombro a que persegue o monstro e avilta a própria integridade crava marcas de lucidez plebéia no rosto irônico e fundo. A poesia intrincada e cáustica de vidros mastigados (Kafka e Augusto dos Anjos; homenagem louca a Torquato Neto) expele sangue limão, misturando o extremo coloquial palpável à sórdida opacidade. A musicalidade de violão inquieto e agudo preserva os estouros do fox, a morosidade dolente de uma harmonia retalhada por raízes perenes, a espontaneidade do samba patriarcal e a gravidade do samba-canção, a quem deve os louros para Orlando Silva, Sílvio Caldas e Nelson Gonçalves.

Roberto caminhou ao centro. As luzes medicinais acompanham os trejeitos de galã do Rei que sabe impressionar, conquistar e cortejar seu povo. Com um sorriso esperto que mais tarde se dará maduro, poesia dita no pé do ouvido e sofisticação de arranjos. É o médico que amacia as dificuldades e apresenta a cura para os problemas ocasionais e preocupantes. Para tudo há uma dose de sua canção. Ele está no comando aclamado.



O desajeito existencial do monstro é asfaltado pela colocação pertinente do médico. O Rei dá as respostas. O fora da lei pergunta. A pergunta é incômoda e a resposta, em geral, conforta. Um cristaliza; o outro, turva. Sérgio era fã de Roberto Carlos. A criatura que busca abalar as estruturas do criador, impassível em sua afirmação. E o homem que busca ferir Deus, referência explícita a quem reverencia no questionamento. “O Caetano rebolava e fazia de tudo pra chocar João Gilberto, então é isso, a gente tem que chocar os ídolos da gente.” Cazuza

E por essa linha, Sérgio se embicou (tal qual um Garrincha habilidoso) por esses cantos da vida e lá ficou. Pagou preço caro enquanto Roberto permaneceu eterno, jovial e gratuito. O médico e criador para quem a criatura dedicou um velho blues pedindo para cantar sua música, pois não sabia fazer romances (“E até o nosso calhambeque não te reconhece mais, eu trouxe um novo blues com um cheiro de uns dez anos atrás, e penso ouvir você cantar”). Um monstro de aparência feia, desidratado e infiel, que se orgulha de ser mentiroso, e que arrastou sua garganta cortada nas calçadas sujas de um mundo independente, inesperado e inóspito. Um mundo próprio alheio a determinadas leis de Estado que o Rei promulgou, com sua voz cirúrgica capaz de emocionar os corações menos abaláveis e empolgar os nervos mais sóbrios.



“Sei como dói meu amor de poeta”, agoniza a Real beleza de Sérgio Sampaio. “Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer”. As curvas da estrada de Santos que propagaram Roberto Carlos. “Que eu estou no paradeiro dessa gente. Quem morreu? Quem teve medo? Quem ficou?”, duvida Sérgio Sampaio. “Daqui pra frente, tudo vai ser diferente, você tem que aprender a ser gente, e o seu orgulho não vale nada”. Garante Roberto.



Ávido por melancolia suspira Sampaio: “Eu guardo seus dias de chuva dentro de mim”, relegado a um posto por inadequação, muito inédito e contemporâneo. “Não adianta, nem tentar, me esquecer...” orgulha-se Roberto Carlos, e toma posse assumindo o romantismo e a Jovem Guarda, repetido e consagrado. O criador teve trajetória larga, bem planejada. A criatura esbandalhou-se perdida sempre à procura. Veio sofrida, efêmera e duradoura pela beleza que guardam os instantes de iluminação. Não se pode afirmar que se foi. Ainda habita, e lateja, mesmo assim, esporádica. O Rei recolhe flores no jardim das vaidades.




Eu quero é botar meu bloco na rua (marcha-rancho, 1972) – Sérgio Sampaio



Com sua loucura lúcida, como disse Lygia Fagundes Telles de Caio Fernando Abreu, Sérgio Sampaio criou uma das mais emblemáticas canções de carnaval de todos os tempos. Em meio à ditadura militar que se instaurara no Brasil, o compositor capixaba, tido por muitos como maldito, dá uma aura lamentosa à festa popular mais famosa do país, ao entoar versos confessionais em tom melancólico, emendando logo na sequência o refrão esperançoso que garantiu o sucesso da canção: “Eu quero é botar meu bloco na rua, brincar, botar pra gemer...”. Além do conteúdo sexual abordado no refrão há também referências ao uso de drogas, tudo feito com muito deboche, misturando tristeza e alegria e dando seu aval definitivo à festa máxima brasileira: o carnaval.

Raphael Vidigal

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