“Palavras, quero-as antes como coisas.” Adélia Prado
Comportava. Sim, a amizade comportava declarações. Revelações, de fato não. Mas a tessitura estabelecida já se encaminhava para o destino trágico. Confissões, essas ocorriam mais raramente. Incrustados e jamais dizíveis no espaço tampouco se clamavam, mas um atendia pelo outro ao menor solfejo.
Juba gasta pinicando as bochechas era a maneira de aproximar-se. Abria-a lentamente as pétalas, como uma lata de leite condensado cortada, e entrava o muxoxo rouco. Sonoro, porém pouco.
Preciso te contar. Preciso ouvir. Era a transmutação soterrada por inúmeras tentativas incompletas e inconclusas. Reclusas, as duas naturezas no desterro do porém, perdão, fica pra mais tarde, agora não dá, quem sabe outro dia, outra hora, outra vinda volteada.
Surtiam efeitos fálicos as investidas recalcadas e dorminhocas. Preferências de sabores e noites entravam na lista em primeiro lugar. Então para se começar os fatos havia primeiro de se decidir o gosto. Doce, azedo, agridoce, amargo eram soluções práticas, mas pouco eficazes. Optavam, ao invés, por cores de frutas combinadas: amarelo do pequi com o amarelo da limonada.
Predominava a tristeza feita lasca arrancada de árvore velha. Bafo da manhã. Onça sem pinta na esteira ao redor do bote e desespero de proteger a cria enquanto assa a pele ensolarada e o interno esfomeado. Eram como eram.
Pouco comuns, concordavam e consideravam a opinião (essa mania de se colocar como e quando) alheia. Combinavam em alguns refrescos, ardiam em outros cães complexos. Em meio à solidão, na algazarra festiva do mundo igualitário e desastroso, tinham lá suas meias nos pés e cachecóis nos pescoços sufocados. Mas é preciso um mínimo de sufocar para agüentar todo o resto, ou pelo menos apanhar sem jorrar lágrima e sal e fresta. Da janela.
Janelas infestadas de frestas. Era por onde (e aí o local aproxima) se comunicavam. No sentido mágico do espelho que rebobina subconjugações da realidade, encontravam-se. Assim, meio mato meio asfalto. Meio tijolo meio barro. Meio gente vivendo a morte no cotidiano intrincado. Eterno enquanto dor profunda.
Queriam na medida em que desmediam vocações, indagações, induções e medos. Rebeldia era palavra de feltro. Queriam sem saber donde partira o querer propriamente dito e até mesmo se podiam ou deveriam cumprir algum destino. Desatino era palavra do vento.
Vestiam só para provarem o controle d’alguma coisa. O poder desde cedo lhes os inebriou os sentidos mais robustos e mais sombrios. Sacrilégios jaziam vagamente em horizontes perpendiculares e rodeados por rostos pregados no chão. Uma superfície imóvel, tocável, crível. Acreditar era necessário. Mas tão difícil frente ao frescor forte da mentira.
Perdiam-se por alternativas. Na implicância de descobrir o caminho através de provações forçadas. Ele, no fio da meada. Ela, no meio da fiação. Elétrica de choque e entrega, um jogo estabeleceu-se entre dois: mundos e sortes nas frestas de janelas infestadas (de trigo e joio e até mesmo feijões e arroz, desde o mais simples ao temerário).
Partiu os pedaços frisos. Afastou o que pertencia aos cantos, às bordas, bordões, retratos. Desafogou a camisa encharcada de respiros que não levam calma, resistem aos apelos de clemência e seguem a retirada ao findo. Mamilos seculares do homem se tornando leão em pêlo. Passeou por cima da cabeça caracóis e caramujos lentos. Cachos revigorantes diziam: segue à frente, te espera a fêmea.
Disposta em correntes marítimas e medievais, a frondosa árvore balança os galhos anunciando a madura colheita. Deserta ao outono o fértil, pois é na pá de lixo que se encontrará a folha do intransponível com capacidade de renascimento. O que orbita em sensações para perfeita admiração, logo perde a graça ao cair do velho sobre o novo.
Enovelaram-se os milhares de ninhos e ninharias dos pássaros abatidos. Cheios de incompreensões, desfazendo nós. Devolvendo nós (revolver) com o próprio arado, ainda tranco, ainda fraco. Imaturo e farto. Sabão duro e limpo e concreto e forte desfazendo-se ao contato soberano. Da pele viva vivida com a gordura ácida graxa e potássio, morta. Doida e doída salientava um ambiente arejado. Ele, olha-se ao fundo de sua fortuna aerada. Esta entendeu que era ágil.
Quando quisera repetir, não por palavras: Frágil.
Raphael Vidigal
Pintura: "Separação", de Edvard Munch.
“Tudo aquilo para que temos palavras é porque já ultrapassamos.” Nietzsche
Nunca sequer disse uma palavra. Seus livros eram páginas em branco. Emanava.
Não alcançara nada porque sempre esteve todo. Chegara ao ponto máximo. Almejado por todos entre todos os escritores, sem nunca ter pronunciado: Não tinha o que dizer.
Não utilizava palavras, conjunções verbais, imagens, sons, metáforas, lingüística, gramática: Ultrapassara.
Não sorria. Não denunciava argüições. Jamais recorreu a argumentos. Sua indagação era. O silêncio. Suas respostas eram. O silêncio. Suas sugestões, mentiras, verdades, concílios, arames, eram. O silêncio.
Vendia, é verdade. Era ouvido, é verdade. Divulgado, é verdade. Não escrevia, mentira. Não falava. O silêncio.
Pontos de interrogação, exclamação, final na testa. Não havia. Não possuía cara. Rosto. Feições de gesso. O silêncio.
Impregnado entre linhas do barulho imediato e repetitivo: repetia a ausência inexistente do silêncio.
Pausas. Respirações. Vírgulas. Elidia. Suspense.
Não se preenchia (os espaços) porque não esvaziava (a condição exposta). Não se calava, nem emitia juízos pontais. O silêncio.
Ganhou prêmios, indicações, leitores e fãs (muito diferentes entre ambos). Mas não por se vender se entregar amansar-se ao mercado.
Não tinha jeito. Tremeliques, intuições, profecias. Nunca ouve. O silêncio soprando ao vento do outono inverno primavera verão. Estações sucediam o silêncio.
No livro. O silêncio. Título: O silêncio.
Si lente. Nota musical num reflexo transparente:
E eis aqui um texto fraudulento, frustrado e furto; embotado de palavras intrusas, se estendeu a sirene.
Raphael Vidigal
Imagem: "Mãos Desenhando", de Escher.
“linho branco que até o mês passado lá no campo inda era flor” Belchior & Fagner em ‘Mucuripe’
Ouro nas mãos. Perpetua o bramir da noite. Cara lavada, pedra rugosa. Tirada das minas, cavernas, mares. Infindo mover das areias. Não há febre. Mas é preciso cuidado, tato, manejo, para soerguer o tesouro, desvela água.
Mão aflita segurando ouro. Permitindo toque dourado. Cintilante. Autêntica de pálpebras e cílios e cristais. Orgânica. Feita de iodo e pele extenuada de méritos, raias e rédeas. Égua solta no pasto. Vaca no cingir do dia. Oferecendo leite, queijo, alimento: vida.
Incenso e mirra. Presentes dos reis-magos. Cheiro de frágua. Medicamentos vêm dos espinhos. Condenada aos meandros da beleza. Retraio rígido. Ao meu encosto. Obstinada. Conservas o sorriso cativo de menina. Abelha a zumbir no mel. Descora, decora: Ouro nas mãos.
Ferro dos dentes de leite. Sino da língua dos anjos. Afina o instrumento encordoado. Madrigal, serena. Ainda que provisória. Vencem a ira tuas lanternas cerradas, uma em cada lado, sob sobrancelhas. Faróis latejantes, da barriga do umbigo ao seio da mãe.
Prisma. Primar. Refletir. Primazia? Indistintas. Tão eu no seu rodar, chacoalhar de gigantes maçãs adocicadas na boca. Arrasar a pacífica contemplação do amor séquito e cortejo. Vasta aderência úmida do colo. E o amor pode ser sagrado. Arrancado pelo talo. Liberto numa lata de terra e margarida. Desde que bem cuidado. Não suportado, regado com a água presa nos mínimos buracos dum aparelho sem dor. Nem aparatado. Transbordar em cachoeiras alquimias e torturas dum viver solitário a dois.
Ouro nas mãos. Repete comigo. És ouro nas mãos. Nos condões, transpirações, cordões desamarrados amados corações. Cerejeiras não alvas. Obtusas? Não. Sujas. Grudando nas mãos (Ouro). Infiltrando a garganta de desejo líquido e satisfação petulante. Cada chupada mais e mais e mais. Cada caroço coça e roça e moça. Alegria infantil dum encanto humanístico. Na animosidade animalizada do ser.
Ressoar revanchista do ouro. Que adapta e enguiça. Peculiar. Aceita e esbraveja, sem cessar. Há uma baunilha no teu travesseiro, esta noite. Germinada com o meu mais todo, carinho. Escrevendo sonhos, desenhando as cores da tua bondade preciosa. Veloz. Ouro é ouro nas mãos. É volúvel.
Vai pelas encostas, pelas orlas, travessias-travessuras duma mulher criança. Dança e dança e dança. Melancolia casta caçando no escuro. Feroz e sensível. Arapuca dos montes, rara. Volúpia volátil da acolhida chuviscada. Rigidez e água. Gelatina e pirulito e bala.
Um desamparo que lhe aparasse. Um aparador que lhe desamparasse. Eu sou todo fragmentos e gema de ovo e clara. Batidos no liquidificador uma mistura heterogênea escalda. Ouro: impotente vagueia, vagareia, contumaz. Vaga. Sépia. Intimidada pela própria luz.
Bem-Te-Vi Ansiosa, Olhos Em Ponto De Cruz, é de aceitar-lhes a mediocridade. Toda uma sensibilidade refratada. Ouro nos corpos imateriais: mãos e pernas e dedos e coração. Hermética ergue o bico, abre as asas e braços enrodilhados, perpetua sua aurora erma: “Lutando sobretudo contra o próprio preconceito que a aconselhava a ser menos do que era, que a mandava dobrar-se.” Clarice Lispector
Ouro nas mãos. Concentrada em prospecções divididas. Maciça, procura algo já fluido. Adeja campos, colinas, bosques, ilhas, sonos.
Raphael Vidigal
“Perdeste o melhor amigo,
não tens sequer um cão
... mas e o humour?” Carlos Drummond de Andrade
Vou para casa ouvindo Maria Calas. Volto do seu enterro. Fagulhas pinçam minha perna esquerda, costas. Cálida. Cessa. Vagarosa: compreendendo a ânsia esquiva-se do sentimento. Monótono. O dia que salvei meu cachorro da piscina. O sinal da porta quando minha tia morreu.
Não costumava ir até a parte de fora da casa, onde ficava a piscina entregue aos mosquitos e outros insetos que almejam a água. Sem pressentir a natureza terrena que será o fim de seu corpo íngreme. Arvoram-se em vôos que não conseguirão completá-lo. Ao intento, à manobra que nem se sabe julgam arriscada. Não é pelo tique nervoso das antenas ou das minúsculas asas que se precisa a indecisão de um movimento destes. Mas eles escolhem por pura culpa de inteligência incauta. Cega de beleza, de precisão, de identidade. Esses bichos sem nome, nem mágoa.
O meu cachorro tinha uma mágoa. Dava para se estabelecer uma linha fina entre o ponto em que nos adorava, e quando divulgou sua discórdia silenciosa, individual, sugestiva. Catarata nos dois olhos, azuis como a impressão azul do beija-flor. Não enxergava, trombava em vasos, plantas, não mais por descuido, vontade, algazarra. Por aspereza do toque. Perdeu a sensibilidade dos olhos. Possuía o faro, é verdade. Mas para um cachorro criado, a visão muitas vezes é a estrada entre o dono e a cria.
Foi tratado como gente, levado ao veterinário. Submetido a esperanças de cura inúteis. Sofreu do martírio de ser gente. Que muitas vezes dos animais é poupado. Resignam-se com maior facilidade. Não se iludem como gente, em busca. Encontram ou desaparecem. Apenas basta.
Mas a nossa voracidade em mudar o curso das cachoeiras incutiu em sua alma de cachorro a famigerada, fatigada, lenço branco sob os olhos da morte: esperança. De tanto crer, tornou-se incrédulo. De tanto ser levado a observar, ficou cego. Luzes eram agora de dentro de seu corpo distribuído em pêlos e caracóis de poodle branco. Manso, virou-se contra nós: seus súditos eram agora carrascos. Não nos culpava. Não é inserindo ameaças e acusações que se cria a culpa, a verdadeira culpa que se enovela bem junto do peito e fixa, gruda. Apresentava seu ar de descaso, arfava, caçava sombra ao invés de gaitas. Ignorava a música de latidos e brincadeiras pelo silêncio de sua espera debaixo à árvore da eternidade.
Enquanto os pedreiros trabalhavam senti a falta daquele cachorro manso. E fui à forra sacudir-lhe do pranto, determinado a passar-lhe a mão em sinal de “vamos brincar que a vida ajuda”. Encontrei o coitado, esbaforido a nadar com remos e pranchas mancos, improvisados, nas águas manchas da piscina, com a porta de entrada aberta por descuido. Salvei-o. Enxuguei seu corpo branco, pêlos e acalmei-lhe o coração confuso. Remexeu-se todo. Mas quando se recompôs os olhos azuis da catarata, cor de beija-flor em disparada, ainda eram olhos azuis de choro.
Bem antes, ainda criança, debaixo a cobertas de uma cama de madeira verde calvo, dormia sonhos escriturários. Criança meiga, imaginava a vida em verdes sonhos, portas falantes, chaleiras bordadeiras. Um suspiro abarrotado despertou-me do sono em ligas de ouro em pó e rubis feitos em calda de chocolate. Alguém tentava invadir a casa.
Mas ao passo em que se tentou algo para impedir a invasão, reconciliaram-se com o invisível. Todos perplexos com o telefonema: a morte de minha tia havia sido minutos antes levada em carta por um anjo invisível que bateu à porta. Em tentativa desastrada, ele, por ser anjo iniciante, provocou excessivo barulho, debateu-se com as grades contra os ladrões cotidianos, e ao invés de chegar calmo aos ouvidos, atordoou-os. Ouvimos com tristeza, e comoção, mas a visita inédita de um carteiro de outro mundo, minimizou a dor de morte.
Zumbido do som do rádio. Vou para casa ouvindo Maria Calas. No retorno do seu enterro. Fagulhas pinçam minha perna esquerda, costas. Cálida. Cessa. Vagarosa. A vida se desfez em você, na noite em que o salvamos. E é no que me pego agora. Com mãos que fremem ao aviso monótono do cosmos. Na minha família, celebra-se o dia dos mortos. Que nos livraram do charco em sorrisos brandos.
“Nós que aqui estamos por vós esperamos.”
Raphael Vidigal
Pintura: "Impressão, nascer do sol", de Monet.
Para Caio Fernando Abreu, em uma noite de insônia.
Vivia na morte desde que matara seu último personagem em um acidente de carro.
Tinha os ombros largos, olhos amarelados e sorria de lado. Sempre sorria de lado, era um modo de parecer simpático sem ser chato. Aliás, tinha horror de ser chamado de chato, embora acontecesse com freqüência quando em uma mesa de bar com os amigos se recusava a tomar mais um chopp ou a cheirar cocaína no banheiro. Aí vinham os insultos: careta, mal-amado, chato. Era de fato mal-amado, isso sempre soubera. A mãe não lhe tinha muito agrado e preferia os outros irmãos, formados em engenharia e com esposas belas. Além disso, deram-lhe o que ela sempre sonhara: netos. Muitos netos. Praticamente um rebanho inteiro. Uma prole saída dum forno de lebres. A mãe ficava tão entusiasmada que parecia sonhar com os filhos fodendo suas mulheres e lhe garantindo mais netos. Como se fosse prova de virilidade, masculinidade, sucesso. E era. E ela sempre dizia. E por isso ás vezes fazia comentários maliciosos com relação à sexualidade dele. Desde cedo parecia desconfiar, perguntando porque não arranjava uma namorada se não era feio, e o chamava de mole, ás vezes fresco. O pai era um caso à parte, sempre indiferente e seco. Não parecia gostar mais dos outros dois. Mas também não gostava de ninguém. Para falar a verdade não se lembrava da última vez que conversara com ele. Talvez até estivesse morto e ele tivesse ido ao enterro. Não se lembrava nem da cara dele, lembrava-se apenas do cigarro aceso na ponta dos dedos amarelos. Dedos amarelados que eram a cor de seus olhos. Parecia ter sido a única coisa herdada de seu pai por ele. Talvez estivesse morto realmente e ele devesse ir buscar alguém relógio ou espelho. Quanto às namoradas nunca gostou de nenhuma delas, e por isso dava razão aos que reclamavam de sua empáfia, arrogância. Era realmente. Se achava muito superior aos homens sem inspiração e burros com quem convivia às vezes, quase sempre. E às mulheres também, tão convencidas e estúpidas. A última namorada tinha uma bela bunda, mas era chata e burra. Mais chata do que burra. Vivia perguntando as coisas e insistindo pra que ele fizesse coisas. Detestava pessoas que pediam, imploravam ou se revelavam muito. Era fechado, mas muito tranqüilo. Não se negava a um papo. Tinha que parecer simpático. Ás vezes pensava que convivia com as pessoas apenas para construir seus personagens, e ganhar dinheiro, e ser reconhecido. Escrevia para um jornal alguns contos. Contos absurdos que abalavam ás vezes sua reputação de careta. Talvez aquele fosse seu verdadeiro ser, o maluco, incestuoso, pornográfico, estuprador, egoísta. Não sabia porque as pessoas ainda liam aquilo. Seus personagens não tinham nada de simpáticos. Mas ele sempre dizia: “uma coisa é a obra, a outra é o construtor.” Acreditava que seus personagens eram pessoas que ele via, na rua, na zona, no escritório, no banheiro, no bar. Cheirando cocaína, falando de negócios, comendo putas, fumando em becos. Para ser escritor precisava viver como um junkie, ou talvez aquilo fosse apenas pretexto para justificar sua sede de vida sem se expor, sem chegar ao limite, parava antes do limite, na divisória entre as linhas escritas e a vida. Não vivia o que escrevia. Pelo menos até ali. Seu último personagem fora um assassino compulsivo que estuprava velhinhas e depois as comia ainda vivas. Talvez fosse uma metáfora do dia a dia, ou talvez uma obsessão mal resolvida por velhinhas. Cansara-se do personagem quando não havia mais graça nas velhinhas, já havia criado todas: caretas, caricatas, conservadoras, cristãs, liberais, lésbicas, hermafroditas, transexuais, putas, freiras e até cabritas. Então com o seu personagem saciado colocou-o dentro de um carro recheado de pedaços de velhas e o jogou de um precipício. E a partir dali morreu junto com ele. Não via mais graça em fazer essas metáforas da vida. Queria algo mais real, direto, sem deslizes. Queria algum personagem que o representasse. A sua vida. Mas era tão chato, tão careta. Então pensou logo em sua primeira característica: mal-amado. E que graça tinha? A mãe achava que ele era bicha, o pai ele não via e as namoradas não o interessavam depois da terceira comida. Isso não era motivo para um conto. Então começou a rememorar suas namoradas antigas. Lembrou-se da primeira, ainda na escolinha, quando andavam de mãos dadas e trocavam beijos estalinhos. Aquilo era divertido. O divertia. Depois passou para a segunda experiência, já na faculdade ficou com uma menina em uma festa da sala e experimentou sua primeira bocetinha. Na hora devia ter sido divertido, agora para falar a verdade não se lembrava bem, não conseguia puxar da memória nada: gosto, cheiro, grito. Da terceira tinha mais memória, uma garota alta, bonita, gostava de falar da lua e ouvir os pássaros, pensou que devia ser meio hippie. Depois disso passou um longo período sem ninguém e se lembrava sempre que nunca havia gostado de ninguém na vida. Nenhuma pessoa estava à sua altura, o fazia feliz. Ninguém o queria mas ele também já não queria ninguém. Talvez nunca tivesse querido. Até encontrar os seus personagens, que ele moldava da maneira exata que achava que devia ser. Da maneira exata que ele queria. Algumas vezes colocava os textos sobre a mesa e gozava sobre eles. Era ele comendo alguém de quem gostava. Gostava do estuprador de velhinhas, já estava mais calejado do que na época que inventara o primeiro: uma transexual lésbica que se arrependera da cirurgia de mudança de sexo e depois que transava com os homens os matava e congelava seus paus, para ficar se lembrando com carinho do que perdera. Mas depois de um tempo todos os enjoavam e ele acabava os assassinando. Era de fato mal-amado. Pela mãe, pelo pai, pelos irmãos e pelas namoradas. Todas pessoas tão inferiores a ele, como tinham a coragem de repudiá-lo? Já desistira de entender e também não importava, que morressem, ele iria buscar seus espelhos e relógios e ficaria tudo bem. Na verdade, achava até um charme em ser mal-amado, talvez fosse uma sina dos escritores, os bons escritores, não os medíocres, talvez alimentasse a sua arte e talvez a felicidade fosse realmente a pior coisa da vida para uma carreira bem sucedida. O que seria das celebridades se não fossem os grandes escândalos? E dos pintores sem as tragédias? E do cinema marginal, novo sem a violência? Nada, ele repetia para si. Niente. Pois para ele ser mal amado era vital para a construção de seus personagens, fotografava uma pessoa na rua e derrubava sobre ela toda a sua amargura na hora de colocá-la naquelas linhas. Tinha horror à bossa nova. Barquinho, violão, sol, mar e lua. Gostava de vexame. De ver as pessoas se acabarem por alguém que não as amava, que nunca as iria amar, que gostava e se divertia com aquilo, com aquele sofrimento inútil por elas, as engrandecia. Era mal-amado, mas tinha um amigo. O Carlos. Sujeito bom, bacana, respeitava os outros mesmo na frente deles. Ao contrário dele, que apesar do sorriso era extremamente desrespeitoso, cínico, e talvez por causa do sorriso as pessoas não percebiam. Era esse o segredo do sorriso, sempre de lado, nunca preciso, guardando no canto da boca aquela bala macia que atingia a pessoa no peito e ela não sentia. O Carlos era uma bicha, todos sabiam, e um dia o convidou para ir com ele a uma boate gay. Ele não queria, mas o Carlos disse que haveria uma garota, uma menina, talvez de uns 15 anos que entraria com carteira falsa, e se ele fosse esperto no fim da noite a comeria. A menina era sobrinha do Carlos, que sempre muito liberal desde cedo contou a ela as coisas da vida. Sua mãe morrera cedo atropelada pelo marido, que era seu padrasto. Seu pai mudara para São Paulo antes dela nascer e nunca quis conhecê-la. O Carlos cuidava dela, e a tratava como se fosse sua filha, mas com aquele jeito peculiar dele de se tratar uma filha. Na hora o Carlos disse, mas agora ele não sabia mais se ela tinha 16 ou 15, de qualquer forma era novinha, e segundo o Carlos, virgem. Ele topou ir até a boate, sua vida estava um tédio e talvez ele descobrisse algum personagem, talvez na menina. As luzes tornavam seus olhos amarelados vermelhos pretos cinzas. Já a menina não parecia ter 16 nem 15, talvez tivesse se confundido, há muito tempo não prestava muita atenção no que os outros diziam, preferia ficar atento a seus movimentos, seus tiques. Descobriu ao longo da vida que todo mundo tinha tiques, e o da menina era ficar todo o tempo ajeitando os seios, que mal cabiam em sua blusa decotada verde. Eles conversavam mas ele não ouvia, não por causa do barulho, mas porque haviam também outros tiques, além dos seios ela gostava também de mexer nos cabelos, que variavam de cor de acordo com as luzes que caíam sobre eles. Os viu azul, os viu vermelhos, laranjas e cinzas. Quando as luzes paravam eram cinzas. Talvez fosse pela fumaça ou talvez fossem realmente cinzas. Ela era simpática, tinha um sorriso totalmente aberto e também as narinas, que pareciam sugar do mundo todos os açúcares, todas as fumaças, todos os cheiros, todas as toxinas. Não sabia dizer se era feia ou bonita, tinha a cintura e as pernas bastante finas, e em um segundo o fez pensar que ela talvez fosse uma bailarina. Uma bailarina de instinto suicida que fazia perfumes com o esperma dos homens com quem ela fodia. Depois achou a idéia meio ridícula. E também não teria coragem de matá-la. Quem a mataria? Não se mata uma bailarina. Se mata a mãe, o pai, o irmão, um assassino de velhinhas, uma freira, o Papa, mas não uma bailarina. Aquilo começou a desinteressá-lo. Se ele não podia matá-la para que criar o personagem? Só se pode criar um personagem quando está em suas mãos a sua vida. E a vida daquela bailarina nunca estaria em suas mãos. Também não queria mais transar com ela, saiu dali e foi até o banheiro. Lá encontrou o de sempre, homens bêbados pelo chão debruçando-se sobre seus vômitos, alguns mijando e outros cheirando cocaína. De repente algum braço o abraçou por trás quando ele se preparava para desabotoar a calça e agarrou seu pau. Entrou em desespero, não sabia o que fazer, sentiu que seria como a transexual que criara e perderia seu membro, era uma profusão tão grande do seu medo que ele já não entendia, porque aquilo? Para que alguém iria querer castrá-lo? Então as mãos que o agarravam o viraram e de repente surgiu uma boca e uma língua que começou a beijá-lo e ele agora gostava, mas também não entendia. As mesmas mãos começaram a acariciá-lo e ele começou a fazer o mesmo e sentiu o peso daquelas costas imensas e aquele peito firme e aquelas pernas fortes e aquela bunda e aquela orelha e aquela boca e aqueles lábios e aqueles dedos e aqueles fios de cabelo e aquelas unhas e aqueles dentes e aquele bico do peito e aquela ponta da língua e aquele pau e aquele umbigo e aquelas bolas e aquele pé e aquela sola do pé e aquela palma da mão e aquele cu e aqueles olhos e aqueles cílios e aquela gengiva e aquele nariz e então saíram dali e foram para o apartamento dele. E não acenderam a luz e foram para a cama e ele deitou e o outro deitou por cima dele e ele sentiu. Sentiu como era bom sentir-se vulnerável. Sentiu-se á mercê do outro de alma e corpo. Totalmente penetrado, totalmente revelado. Seus ossos tremiam e sua carne estalava de suor e gozo. No dia seguinte não viu o outro. Fora embora sem deixar vestígio, nome ou endereço. Também não queria saber do outro. Sabia dele: era gay. E como de costume mal amado também. A revelação de sua sexualidade não o fez sentir-se querido pelo outro. Não o era. Também não o queria. O achara burro e chato. Mas servira para aquela noite. Continuava mal amado. Gay e mal amado. E pensava em sua mãe gozando de prazer vendo seus irmãos procriarem filhos. Era mais uma coisa que ele não a daria. Também não queria. Preferia ver a mãe morta a dar-lhe netos. Não queria vê-la sorrir, não queria vê-la feliz. Queria no máximo ir ao seu enterro, como não fizera com seu pai. Dessa vez ele faria. Queria também ver os irmãos morrerem. E todos os seus personagens. E a vida. Ele queria a morte da vida. Queria a morte reinando soberana sobre a Terra. Sem transexuais arrependidas, sem freiras assassinas, sem padres estuprando suas mulheres, sem água, sem comida, sem sexo, sem hipocrisia. Foi quando viu que tudo aquilo era ele. Todos os personagens eram ele. Liberal, careta, homem, mulher, bicha. Sagrado, religioso, covarde, assassino. Todos os personagens tinham um pouco dele. Gay, mal-amado e suicida. Sentiu-se feliz como nunca antes. Não precisava mais ser reconhecido. Reconhecera-se.
Raphael Vidigal
Pintura: "Wooman, 1951 - 2", de Willem de Kooning.
“O que ele mais temia era morrer de olhos abertos e não ter quem os fechasse.” Luiz Carlos Merten
Era um menino, tinha uns 13 anos, cabelos cacheados negros, bochechas magricelas e brancas, olhos castanhos sem muita expressão, uma boca meio sem cor, dentes amarelados e quase sempre um pouco sujos, mãos compridas, dedos longos, pés lambidos e unhas cortadas. Era judeu e circuncisado. O resto não era muito interessante, não que essas coisas fossem, mas servem para dizer como ele se assemelhava aos outros. A todos os outros ou a algum pelo menos. À bem da verdade não tinha nada de diferente, nem de perto, nem de longe. Não gostava de brócolis, fazia pirraça quando a mãe não fazia o que ele queria e àquela altura só havia beijado uma menina. Essas coisas normais que a maioria das pessoas normais são e fazem nessa idade. Na verdade havia só uma coisa, mas uma coisa que ninguém via, nunca, nem nunca veria: ele não dormia. Nunca havia dormido. Desde que nascera passara todo o tempo de sua vida acordado. E ninguém nunca percebia. Não que ninguém se importasse com ele, pelo contrário, era até muito amado, pela mãe, pelo pai, pelos cachorros, pela empregada, pelas meninas da escola. Apesar de ser igual aos outros era bonito, até muito. Acontece que desde cedo desenvolvera um truque: ficava quieto, quase imóvel e fechava os olhos. Essa coisa que todos fazemos quando estamos realmente dormindo ou quando estamos com medo. No caso dele não sabia dizer se era medo, nem sabia direito o que era ter medo, tinha apenas 13 anos e sempre fora muito protegido, se tivesse tido medo não sabia que se chamava assim. De qualquer forma era assim que ele fazia. E nunca falhara, pelo contrário, funcionava muito bem, ele era um especialista, e ás vezes até se gabava daquilo, quando a mãe à noite ia a seu quarto e o comparava a um anjinho. Pensava diabolicamente como era divertido saber enganar a mãe. Depois de um tempo passou a enganar também os outros, quando a professora fazia uma pergunta que ele não sabia fingia dormir, quando a empregada o obrigava a comer brócolis também, quando um amigo o chamava para algo que ele não queria, a mesma coisa. E assim estava sempre acordado quando dormia. A especialidade começou a se desenvolver quando a enfermeira o tirou do seio de sua mãe e o levou para dormir pela primeira vez. Foi só ouvir aquela cantiga de ninar que ele logo fechou os olhos e imobilizou-se. Como fora a primeira vez não sabia dizer hoje em dia se fizera pensado ou por puro instinto. Na verdade até hoje não sabia se fazia aquilo premeditadamente ou se estava condicionado àquilo. Pensou que talvez não dormisse para se proteger. E até aí continuava podendo ser instinto ou premeditação. Mas como? Se não tinha medo? Se proteger de quê? De quem? Ninguém o faria mal, não havia motivo, ele era igual a todos os outros e até bonito. Na verdade não sabia por que não dormia. Não tinha medo e também não fazia nada nesses momentos. Apenas fechava os olhos e ficava imóvel, nunca se mexia, esperava até a hora de se levantar exatamente na mesma posição sempre, meio de lado agarrando com a mão um pedaço do travesseiro. Ás vezes pensava na morte, ás vezes pensava na vida. Ás vezes pensava na mãe quando o amamentava, ás vezes pensava no pai quando o ensinava a jogar bola. Ás vezes pensava na empregada quando a espiava pela fechadura do banheiro de empregada e via a água escorrer sobre seus seios morenos fartos, percorrendo a barriga lisa, passando pelo umbigo até chegar aos pêlos que ele julgava macios da boceta, ás vezes pensava nas vezes que brincava com seus cachorros que pulavam em cima dele e o lambiam felizes. Pensava que nenhum animal do mundo era mais feliz que os cachorros. E que eles eram também extremamente burros. E que talvez a burrice fosse fundamental para a felicidade. Então pensava se era feliz. E não sabia. E ás vezes achava que sim e ás vezes achava que não e muitas vezes achava que só ás vezes era feliz mas em outras muitas era infeliz. E não sabia porque, se tinha cabelos bonitos, era bonito, os outros o achavam bonito e ele era exatamente igual aos outros tanto os feios quanto os bonitos. Só que tinha aquela diferença, aquela diferença que ninguém via: ele não dormia. Então começava a se perguntar para quê ter aquela diferença se ninguém via, para quê ter aquela diferença se ela não aparecia, se para os outros ele era exatamente igual aos outros só que bonito. E ser bonito não era na verdade nenhuma diferença, porque haviam muitos outros bonitos e os feios também tinham quem os achassem bonitos. Então resolveu que esconder aquela diferença era uma burrice e nunca deveria tê-la começado a escondê-la, e pensou em quando nasceu e enganou a enfermeira, e depois a mãe, o pai, a empregada, a professora, os cachorros, os amigos. E resolveu que aquilo iria acabar e ele iria mostrar a sua diferença. Chamou primeiro um amigo, porque embora gostasse de sua mãe não confiava tanto nela a ponto disso. E tinha medo. Gostava mais dela do que do amigo. Então disse para o amigo que queria que ele dormisse em sua casa. Então quando chegou a hora lá estava ele acordado, mais de meia noite, e dessa vez sem os olhos fechados nem imóvel, ele se mexia, tinha os olhos abertos e olhava para o seu amigo, dizendo que provaria que não dormia. Mas o seu amigo primeiro achou graça, depois uma loucura, depois uma bobagem. E não quis saber e dormiu. E ele ficou lá acordado, mais uma vez imóvel, olhos fechados, sem dormir, e ninguém via. Desistiu do amigo, ele era muito idiota e jamais entenderia. Resolveu mostrar à empregada. No início ela achou estranho, desconfiou que o menino a espiava e queria outra coisa quando ele disse que tinha medo e não queria que sua mãe pensasse que ele era um maricas. Então quando ela entrou em seu quarto à noite ele contou tudo. Não foi difícil, gostava na medida certa daquela mulata e confiava nela. Desde cedo ela o alimentara quando a mãe saía para trabalhar. Então ele observou que ela também achava graça, mas de um jeito diferente do seu amigo, achava graça com aquele sorriso largo de mulata que ela tinha, e se segurava para não rir muito alto e acordar a patroa e o patrão. E mandou ele ir dormir logo e que essas histórias de maluco devia ser porque ele andava assistindo muita televisão ou comendo besteira à noite. E disse que dormiria lá com ele essa noite mas amanhã não dormiria. E que se ele continuasse com essas histórias malucas teria que falar com a patroa para levá-lo a um psicólogo. E então depois de falar muito achando graça e dando sermão ela dormiu. E ele ali, com os olhos fechados, imóvel, sem dormir. E ninguém via. Ninguém acreditava. Chegou a pensar então que ninguém jamais acreditaria e que aquilo era a maior bobagem e que talvez tudo fosse um delírio e que talvez ele dormisse mas não percebesse e fosse louco e esquizofrênico e as pessoas não contavam a ele. Mas depois percebeu que não era nada disso. Que não podia ser. Que não tinha sentido porque ele conhecia outros loucos e esquizofrênicos e sabia como eles eram. E embora ele fosse igual a todos igual a eles ele não era. E desejou então ser como eles. E queria ser um deles. E decidiu que provaria aquilo nem que fosse para um deles. E na noite seguinte ele chamou seu pai. E contou toda a história e disse a seu pai que se ele não acreditasse ele chamaria um louco para lhe contar tudo. E que seu pai era sua última esperança antes dos loucos. E seu pai falou vai dormir meu filho que seu pai está cansado e amanhã trabalha e amanhã conversamos e já está tarde e amanhã você tem aula e acorda cedo. Mas ele não acordava. Ele nunca acordara na vida. Ele nascera acordado e assim morreria. Porque só acordava quem dormia. E ele nunca dormia nem dormiria. E ele então mudou de idéia e resolveu procurar sua mãe antes de ir ao hospício. E tomou muita coragem porque sua mãe era quem mais gostava dele talvez por ser igual a todos os outros e bonito. E tinha medo de decepcioná-la e não queria decepcioná-la mas não tinha escolha e aquilo tinha que ser feito tinha que ser mostrado. Cansara de viver acordado escondido. Queria que todos vissem que nunca sonhava nem tinha pesadelos pois sua vida era só a realidade e não existia fantasia boa ou má. E quando sua mãe ouviu que ele não dormia sorriu um sorriso complacente e disse também que houve uma época que ela não dormia. E que talvez fosse genético e que ele não tinha culpa de ter herdado aquilo e era uma herança maldita. Então ela lhe trouxe um comprimido e ele tomou e então achou que estava tudo resolvido que sua mãe sabia o entendia e ele dormiria. Então continuou deitado imóvel e fechou os olhos e não dormiu. E quando amanheceu ficou desesperado e contou à mãe. E ela lhe deu dois comprimidos disse que tomasse os dois que seria mais forte e então resolveria. E então ele tomou e perguntou à mãe porque ela não dormia. E ela disse que detestava a vida e se casou obrigada com seu pai e nunca o amou e gostava de mulheres e só o teve para se disfarçar das vizinhas que a chamavam de lésbica. E ele viu que sua mãe não gostava dele e não ligou porque tomou dois comprimidos e mesmo assim não dormia. E viu que era igual a sua mãe e não gostava dela, nem da empregada, nem dos cachorros, nem do pai, nem da professora, nem do amigo. Porque ele não dormia e ninguém via. Então saiu dali e foi até o hospício e tentou entrar mas não conseguiu porque o moço da porta disse que ele era igual e ali era o lugar dos diferentes. E desistiu de tudo e de todos e do mundo e da morte e da vida e da empregada e seus seios e os cachorros e as lambidas e sua mãe e a comida e seu pai e os remédios e o amigo e a amiga e a professora e o beijo e o travesseiro e pensou em voltar pra casa mas não voltou e ficou na rua e deitou no chão e as pessoas passavam por cima dele e não o viam e pisavam em sua cabeça e não o viam e escorria sangue e escorria lixo e escorria ossos e escorria carne e escorria sêmen e escorria o mundo e escorria morte e escorria vida e ele não dormiu. E morreu acordado, que é a pior forma de estar morto.
Raphael Vidigal
Pintura: "Paisagem com azeitonas e eucalipto", de Anna Boch.
“Deixe-me cair da janela com confete em meu cabelo” Tom Waits
Percebo contento. Com o tempo. Convento. Trento. Trema. Corte.
Válvulas. Vagalumes. Lume. Vaga. Cume.
Uma coceira no olho verde-esquerdo. E, no entanto, precisava ler. As letras embaralhavam-se. O sentido evasivo.
- O improviso é uma criação! – bradou. Mas pouco se faz quando o grilo resolve calar-se. Singrou o inefável. Só vem à tona na madrugada. Congestionado? Estava esvaziando.
As extremidades continham as veias do vírus. Seiva mergulhada em sulcos, agulhas lanosas.
Infâmia perfuração na imanência do genuíno rastro. Metais, Renascença, Barroco, Abstrato. Eriçado, imune massa compacta. Válvulas metálicas. Tonitruante trégua germina a putrefação enverga: Faquir. Estalou o fole.
Estapafúrdia borrifa estrelas marinhas rosas ardis alfinete.
Descasca. Estreita. Irrisório indomável: rincha, relincha, aspira. Celeiro odor vinho. Cavalo cor creme. Duas naturezas ilícitas. Essência de lavanda nas patas. Câimbra casta. Tremer à luz tão soberba escuridão. Vã. Desperdiçada água. Mas eis eu aqui sacrificando-me. Feito do vinho e do creme e da água. Fosco azul. Telha, torres, pontes, vibra fumegante, confrangida liberdade passa.
Mas e o mastro? E a moringa? E a morfina? E a balbúrdia? Não nos pertencem jamais. No bruxuleio estupefato. Com tanto temor mudo.
Dedos esmaltados. Ventre aparado. Vapor. Sangria. Íntegro espraiar-se. Preciso dessa chave. Dessa maior limpeza. Dardos. Salientes gengivas duras. Nata sobrevive covarde no balde de leite. Interrupções. Indecisões. E então escorregar. Escorrer langor silente maduro sacro. Angela Ro Ro me dá seu canto. Angela Ro Ro me dá seu canto!!!
Penumbra. Brasas. Cinzas. Flama. Uma voz soprada. Oscila na neve divagar. Servindo grave enrijece o pranto. Desfalece, rubor.
Cerâmica, argila, conivente canivete cortante. Despeja o balde que nos forma, fortalece, perfura. Cola os pregos nos olhos. Tarraxinhas nos lábios. Chave-inglesa, alicate, isopor no tronco. Seiva corre gangrenada. Estabanada, vidente. Pilhas organizadas, fundo falso (grande qualidade). A idéia suprime a matéria. Sublime a matéria. Sublinhe. O equilíbrio. A sensação que precede a ânsia. Da coisa se fazendo viva em sua matéria-morta. Os marca livros atrapalham-no a visão. Cantilena. Malograr.
Será que conseguirei consertar essa história, apesar do obstáculo à míngua?
O gancho como vírgula. Ternura. Cândida. Fuligem da nossa fome. Labor. Soberana. Ventríloquo, palhaço nobre. Cobre (as orelhas – metal valioso). Motins, mistérios, dívidas, dúvidas.
O Vinho Volta-se Uvas. O Creme Anestesia-se.
Que buraco mais comprido esse do labirinto do estômago.
É loucura
Loucura é de fato
Loucura rala
Loucura a salto
Não quero leitores afoitos por eu lhes mostrar o caminho. Fomentem-se sós.
Vi um cachorro morto. Com coleira, ainda. Quem o terá relegado aos cinzentos braços do concreto pegajoso? Perigo.
Raphael Vidigal
Pintura: "Retrato de Yvone Landsberg", de Henri Matisse.
“Morrer é ser exposto aos cães covardemente.” Maura Lopes Cançado
Eu chorei de felicidade, como há muito não chorava chuva... Os meus contemporâneos são todos inertes refluxos, tenho que amanhecer. Nas profundezas de Goya, espúrios jatos de massa grossa, pastosa, espessa camada sob a superfície viva da vida. “Escrever com sangue”, explode Nietzsche.
É um gozo, um regozijo dançar no lago escuro do amor trêmulo. A arte ilumina redenção aos desesperados. A opulência das carnes defronta o olho vítreo da fome. Violência que brota bruta. “Não escondam a loucura”, pragueja Allen Ginsberg.
Em oposição aos meus ‘conterrâneos’, não pretendo realizar, mas fantasias. Burro em corpo de gente. Calda de espanto futuro. Coruja espia o martírio. “Começou a explorar o Abismo, Plantou um frutífero pomar”, profetizou William Blake. Pois é que “o sono da razão produz monstros”, escritura de Goya.
Enigmática poção, onde vamos deitar os lençóis que envolvem a pele já cheirada de azedo. Goya é meu posso, caldeirão afundo ditos bruxos feitiçaria. Vincos cravados carcomidos pela funda Inquisição? Há movimento na luz e sombras. Prova o gosto onírico, instinto de cavalo alado. Carruagem de anjos negros.
Evoco El Greco. Louco demônio, selvagem. Flores róseas demolindo tosca melancolia. Lúgubres saudades, cristais de lágrimas. “O canto sensato dos anjos se ergue do navio salvador: é o amor divino.” Rimbaud. Música de Beethoven. Que a sua tragédia assim quis que a foice lhe calasse as fadas sensoriais do ouvido. No grito de alcova, o coração em espécie.
Escorre lucidez de Michelangelo ou a loucura de Camille Claudel? Um corpo incompleto, condensado em inventivos órgãos. “Que não te baste nunca uma aparência do real”, adverte o místico Caio Fernando Abreu, e sua música esmeralda. Dentre os cabelos vermelhos de Curupira, queima-me o fogo das gravuras religiosas. Com seu viscoso caldo. “Pois a minha carne é comida e o meu sangue é bebida. Aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue mora em mim e eu nele...” João 6.54-55
Exposto nas paredes sem pintura da prefeitura de Belo Horizonte, Goya aliança a imagem de Guimarães Rosa: “O que um dia vou saber, não sabendo, eu já sabia...”. O texto se antecipa a mim. É ele quem diz como ser dito. “Tenho desejo forte, e o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo.” Fernando Pessoa. Esmeros caprichosos de Goya.
Raphael Vidigal
Pintura: "São Pedro Arrependido", de Goya.
“para um poeta, a fantasia é a realidade e a realidade nada significa.” Oscar Wilde
Peça teatral: Gângsters. Discussão: o que arranjar com pérola da noite. Quantos: quatro. Características pessoais: todos armados. Fisionomia: um gordo, dois fortes, outro alto. Fumam: charutos. Bebem: em copos quadriculados. Substância: desconhecida. Relatório para futuras providências.
Pérola da noite está amarrada no sótão. Não no porão. O cheiro ralo atrapalharia seu penteado. São loiros seus finos fios de cabelos dourados. Entretida com um espelho, passa batom nos carnudos lábios (cor: vermelha) e se diverte ouvindo a discussão no andar de baixo. Possuidora de seios fartos e um traquejo infalível para diferenciar whisky de rum, é, no entanto, solitária.
Concha. O único sinal que desperta pérola da noite. Desde moçoila procura. Resolveu, então, por iniciativa própria entregar-se aos gângsters. Claro, que, para isso, teve antes que assassinar a madre Ostra, uma italiana reacionária, que jamais entenderia os reais motivos de uma suspeita de fraude.
Pérola não consegue conviver com a luz solar. Por motivos claros. É certo que as profundezas do oceano lhe dariam abrigo soturno, azul-marinho. Mas isso não é o suficiente para uma pérola moderna e auto-suficiente como ela. Vê-se a necessidade de encontrar uma escuridão sim, dentro duma concha de alto quilate.
Sapateiro, o gângster número 1, o gordo, desequilibrado como um homem num salto-alto, sugeriu a alternativa que deixaria menos rastros: queimá-la. No entanto, entre cartas de baralho, logo foi descartada. O odor exalado seria insuportável. Voltaram então ao carteado, e depois de litros de rum e inspiração, surgiu outra sugestão.
Costureiro, o gângster número 2, o alto, possuidor de bigode de linhas finas de gato como o de Salvador Dalí, supôs que poderiam aproveitá-la como tema de um anúncio publicitário. Pena que não sairia bem na foto, pois era difícil arrancar-lhe um sorriso, os lábios carnudos sempre cerrados.
Ao que imediatamente apareceu outra voz! Sultão, o gângster número 4, outro gordo, chefe da quadrilha, bafejou: amarrem-na de cabeça para baixo e façamos um suculento prato, aproveitando as abóboras e cebolinhas!
Prontamente foi rejeitada a idéia. Tinham asco de canibalismo. Os outros. O chefe decepcionou-se, desistira. Ia quase ordenando que desamarrem-se pérola e a jogassem de volta ao mar.
O gângster número 3, Vestibulando, o forte, simplesmente não tinha idéia nenhuma. Só arqueava a cabeça para dizer se concordava ou não com as propostas alheias. Manteve-se calado no silêncio. No barulho, já não era de acudir tanto.
Então, decidiram pela primeira vez ouvir o desejo de pérola da noite, ela disse, com os lábios carnudos de batom vermelho: uma concha.
Não foi preciso mais nada, escalpelaram pérola. Venderam suas partes mais requisitadas em bisturis de joalherias, naquela época era grande a procura por cirurgias plásticas: seios, lábios, bunda, maquiagem, pernas, coxas, olhos e rímel, todos foram usados em peças de menor brilho e destaque.
Só a tua lágrima, lançada como rede em peixes, regressou ao mar. Onde ela espera afoita, furtiva, a que nunca veio: a concha.
Raphael Vidigal
Pintura: "Toilette", de Toulouse-Lautrec.