sábado, 17 de dezembro de 2011


“Perdeste o melhor amigo,
não tens sequer um cão
... mas e o humour?” Carlos Drummond de Andrade



Vou para casa ouvindo Maria Calas. Volto do seu enterro. Fagulhas pinçam minha perna esquerda, costas. Cálida. Cessa. Vagarosa: compreendendo a ânsia esquiva-se do sentimento. Monótono. O dia que salvei meu cachorro da piscina. O sinal da porta quando minha tia morreu.

Não costumava ir até a parte de fora da casa, onde ficava a piscina entregue aos mosquitos e outros insetos que almejam a água. Sem pressentir a natureza terrena que será o fim de seu corpo íngreme. Arvoram-se em vôos que não conseguirão completá-lo. Ao intento, à manobra que nem se sabe julgam arriscada. Não é pelo tique nervoso das antenas ou das minúsculas asas que se precisa a indecisão de um movimento destes. Mas eles escolhem por pura culpa de inteligência incauta. Cega de beleza, de precisão, de identidade. Esses bichos sem nome, nem mágoa.

O meu cachorro tinha uma mágoa. Dava para se estabelecer uma linha fina entre o ponto em que nos adorava, e quando divulgou sua discórdia silenciosa, individual, sugestiva. Catarata nos dois olhos, azuis como a impressão azul do beija-flor. Não enxergava, trombava em vasos, plantas, não mais por descuido, vontade, algazarra. Por aspereza do toque. Perdeu a sensibilidade dos olhos. Possuía o faro, é verdade. Mas para um cachorro criado, a visão muitas vezes é a estrada entre o dono e a cria.

Foi tratado como gente, levado ao veterinário. Submetido a esperanças de cura inúteis. Sofreu do martírio de ser gente. Que muitas vezes dos animais é poupado. Resignam-se com maior facilidade. Não se iludem como gente, em busca. Encontram ou desaparecem. Apenas basta.

Mas a nossa voracidade em mudar o curso das cachoeiras incutiu em sua alma de cachorro a famigerada, fatigada, lenço branco sob os olhos da morte: esperança. De tanto crer, tornou-se incrédulo. De tanto ser levado a observar, ficou cego. Luzes eram agora de dentro de seu corpo distribuído em pêlos e caracóis de poodle branco. Manso, virou-se contra nós: seus súditos eram agora carrascos. Não nos culpava. Não é inserindo ameaças e acusações que se cria a culpa, a verdadeira culpa que se enovela bem junto do peito e fixa, gruda. Apresentava seu ar de descaso, arfava, caçava sombra ao invés de gaitas. Ignorava a música de latidos e brincadeiras pelo silêncio de sua espera debaixo à árvore da eternidade.

Enquanto os pedreiros trabalhavam senti a falta daquele cachorro manso. E fui à forra sacudir-lhe do pranto, determinado a passar-lhe a mão em sinal de “vamos brincar que a vida ajuda”. Encontrei o coitado, esbaforido a nadar com remos e pranchas mancos, improvisados, nas águas manchas da piscina, com a porta de entrada aberta por descuido. Salvei-o. Enxuguei seu corpo branco, pêlos e acalmei-lhe o coração confuso. Remexeu-se todo. Mas quando se recompôs os olhos azuis da catarata, cor de beija-flor em disparada, ainda eram olhos azuis de choro.

Bem antes, ainda criança, debaixo a cobertas de uma cama de madeira verde calvo, dormia sonhos escriturários. Criança meiga, imaginava a vida em verdes sonhos, portas falantes, chaleiras bordadeiras. Um suspiro abarrotado despertou-me do sono em ligas de ouro em pó e rubis feitos em calda de chocolate. Alguém tentava invadir a casa.

Mas ao passo em que se tentou algo para impedir a invasão, reconciliaram-se com o invisível. Todos perplexos com o telefonema: a morte de minha tia havia sido minutos antes levada em carta por um anjo invisível que bateu à porta. Em tentativa desastrada, ele, por ser anjo iniciante, provocou excessivo barulho, debateu-se com as grades contra os ladrões cotidianos, e ao invés de chegar calmo aos ouvidos, atordoou-os. Ouvimos com tristeza, e comoção, mas a visita inédita de um carteiro de outro mundo, minimizou a dor de morte.

Zumbido do som do rádio. Vou para casa ouvindo Maria Calas. No retorno do seu enterro. Fagulhas pinçam minha perna esquerda, costas. Cálida. Cessa. Vagarosa. A vida se desfez em você, na noite em que o salvamos. E é no que me pego agora. Com mãos que fremem ao aviso monótono do cosmos. Na minha família, celebra-se o dia dos mortos. Que nos livraram do charco em sorrisos brandos.

“Nós que aqui estamos por vós esperamos.”

Raphael Vidigal

Pintura: "Impressão, nascer do sol", de Monet.

1 comentários:

Raphael Vidigal disse...

Oi Raphael, por causa de uma crise de labirintite, só hoje pude
ler a excelente matéria sobre João do Vale e os contos.
São ótimos, todos eles. Realmente surpreendentes!
Nossa, chorei com "Dia dos Mortos", me lembrei do Luquinhas,
da sua luta por causa da catarata.
Com toda sinceridade, você é meu escritor favorito e Eduardo
também está apaixonado por seus contos.
Parabéns, você está se superando!
beijos,
Maria Inês

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