segunda-feira, 12 de dezembro de 2011


“O que ele mais temia era morrer de olhos abertos e não ter quem os fechasse.” Luiz Carlos Merten


Era um menino, tinha uns 13 anos, cabelos cacheados negros, bochechas magricelas e brancas, olhos castanhos sem muita expressão, uma boca meio sem cor, dentes amarelados e quase sempre um pouco sujos, mãos compridas, dedos longos, pés lambidos e unhas cortadas. Era judeu e circuncisado. O resto não era muito interessante, não que essas coisas fossem, mas servem para dizer como ele se assemelhava aos outros. A todos os outros ou a algum pelo menos. À bem da verdade não tinha nada de diferente, nem de perto, nem de longe. Não gostava de brócolis, fazia pirraça quando a mãe não fazia o que ele queria e àquela altura só havia beijado uma menina. Essas coisas normais que a maioria das pessoas normais são e fazem nessa idade. Na verdade havia só uma coisa, mas uma coisa que ninguém via, nunca, nem nunca veria: ele não dormia. Nunca havia dormido. Desde que nascera passara todo o tempo de sua vida acordado. E ninguém nunca percebia. Não que ninguém se importasse com ele, pelo contrário, era até muito amado, pela mãe, pelo pai, pelos cachorros, pela empregada, pelas meninas da escola. Apesar de ser igual aos outros era bonito, até muito. Acontece que desde cedo desenvolvera um truque: ficava quieto, quase imóvel e fechava os olhos. Essa coisa que todos fazemos quando estamos realmente dormindo ou quando estamos com medo. No caso dele não sabia dizer se era medo, nem sabia direito o que era ter medo, tinha apenas 13 anos e sempre fora muito protegido, se tivesse tido medo não sabia que se chamava assim. De qualquer forma era assim que ele fazia. E nunca falhara, pelo contrário, funcionava muito bem, ele era um especialista, e ás vezes até se gabava daquilo, quando a mãe à noite ia a seu quarto e o comparava a um anjinho. Pensava diabolicamente como era divertido saber enganar a mãe. Depois de um tempo passou a enganar também os outros, quando a professora fazia uma pergunta que ele não sabia fingia dormir, quando a empregada o obrigava a comer brócolis também, quando um amigo o chamava para algo que ele não queria, a mesma coisa. E assim estava sempre acordado quando dormia. A especialidade começou a se desenvolver quando a enfermeira o tirou do seio de sua mãe e o levou para dormir pela primeira vez. Foi só ouvir aquela cantiga de ninar que ele logo fechou os olhos e imobilizou-se. Como fora a primeira vez não sabia dizer hoje em dia se fizera pensado ou por puro instinto. Na verdade até hoje não sabia se fazia aquilo premeditadamente ou se estava condicionado àquilo. Pensou que talvez não dormisse para se proteger. E até aí continuava podendo ser instinto ou premeditação. Mas como? Se não tinha medo? Se proteger de quê? De quem? Ninguém o faria mal, não havia motivo, ele era igual a todos os outros e até bonito. Na verdade não sabia por que não dormia. Não tinha medo e também não fazia nada nesses momentos. Apenas fechava os olhos e ficava imóvel, nunca se mexia, esperava até a hora de se levantar exatamente na mesma posição sempre, meio de lado agarrando com a mão um pedaço do travesseiro. Ás vezes pensava na morte, ás vezes pensava na vida. Ás vezes pensava na mãe quando o amamentava, ás vezes pensava no pai quando o ensinava a jogar bola. Ás vezes pensava na empregada quando a espiava pela fechadura do banheiro de empregada e via a água escorrer sobre seus seios morenos fartos, percorrendo a barriga lisa, passando pelo umbigo até chegar aos pêlos que ele julgava macios da boceta, ás vezes pensava nas vezes que brincava com seus cachorros que pulavam em cima dele e o lambiam felizes. Pensava que nenhum animal do mundo era mais feliz que os cachorros. E que eles eram também extremamente burros. E que talvez a burrice fosse fundamental para a felicidade. Então pensava se era feliz. E não sabia. E ás vezes achava que sim e ás vezes achava que não e muitas vezes achava que só ás vezes era feliz mas em outras muitas era infeliz. E não sabia porque, se tinha cabelos bonitos, era bonito, os outros o achavam bonito e ele era exatamente igual aos outros tanto os feios quanto os bonitos. Só que tinha aquela diferença, aquela diferença que ninguém via: ele não dormia. Então começava a se perguntar para quê ter aquela diferença se ninguém via, para quê ter aquela diferença se ela não aparecia, se para os outros ele era exatamente igual aos outros só que bonito. E ser bonito não era na verdade nenhuma diferença, porque haviam muitos outros bonitos e os feios também tinham quem os achassem bonitos. Então resolveu que esconder aquela diferença era uma burrice e nunca deveria tê-la começado a escondê-la, e pensou em quando nasceu e enganou a enfermeira, e depois a mãe, o pai, a empregada, a professora, os cachorros, os amigos. E resolveu que aquilo iria acabar e ele iria mostrar a sua diferença. Chamou primeiro um amigo, porque embora gostasse de sua mãe não confiava tanto nela a ponto disso. E tinha medo. Gostava mais dela do que do amigo. Então disse para o amigo que queria que ele dormisse em sua casa. Então quando chegou a hora lá estava ele acordado, mais de meia noite, e dessa vez sem os olhos fechados nem imóvel, ele se mexia, tinha os olhos abertos e olhava para o seu amigo, dizendo que provaria que não dormia. Mas o seu amigo primeiro achou graça, depois uma loucura, depois uma bobagem. E não quis saber e dormiu. E ele ficou lá acordado, mais uma vez imóvel, olhos fechados, sem dormir, e ninguém via. Desistiu do amigo, ele era muito idiota e jamais entenderia. Resolveu mostrar à empregada. No início ela achou estranho, desconfiou que o menino a espiava e queria outra coisa quando ele disse que tinha medo e não queria que sua mãe pensasse que ele era um maricas. Então quando ela entrou em seu quarto à noite ele contou tudo. Não foi difícil, gostava na medida certa daquela mulata e confiava nela. Desde cedo ela o alimentara quando a mãe saía para trabalhar. Então ele observou que ela também achava graça, mas de um jeito diferente do seu amigo, achava graça com aquele sorriso largo de mulata que ela tinha, e se segurava para não rir muito alto e acordar a patroa e o patrão. E mandou ele ir dormir logo e que essas histórias de maluco devia ser porque ele andava assistindo muita televisão ou comendo besteira à noite. E disse que dormiria lá com ele essa noite mas amanhã não dormiria. E que se ele continuasse com essas histórias malucas teria que falar com a patroa para levá-lo a um psicólogo. E então depois de falar muito achando graça e dando sermão ela dormiu. E ele ali, com os olhos fechados, imóvel, sem dormir. E ninguém via. Ninguém acreditava. Chegou a pensar então que ninguém jamais acreditaria e que aquilo era a maior bobagem e que talvez tudo fosse um delírio e que talvez ele dormisse mas não percebesse e fosse louco e esquizofrênico e as pessoas não contavam a ele. Mas depois percebeu que não era nada disso. Que não podia ser. Que não tinha sentido porque ele conhecia outros loucos e esquizofrênicos e sabia como eles eram. E embora ele fosse igual a todos igual a eles ele não era. E desejou então ser como eles. E queria ser um deles. E decidiu que provaria aquilo nem que fosse para um deles. E na noite seguinte ele chamou seu pai. E contou toda a história e disse a seu pai que se ele não acreditasse ele chamaria um louco para lhe contar tudo. E que seu pai era sua última esperança antes dos loucos. E seu pai falou vai dormir meu filho que seu pai está cansado e amanhã trabalha e amanhã conversamos e já está tarde e amanhã você tem aula e acorda cedo. Mas ele não acordava. Ele nunca acordara na vida. Ele nascera acordado e assim morreria. Porque só acordava quem dormia. E ele nunca dormia nem dormiria. E ele então mudou de idéia e resolveu procurar sua mãe antes de ir ao hospício. E tomou muita coragem porque sua mãe era quem mais gostava dele talvez por ser igual a todos os outros e bonito. E tinha medo de decepcioná-la e não queria decepcioná-la mas não tinha escolha e aquilo tinha que ser feito tinha que ser mostrado. Cansara de viver acordado escondido. Queria que todos vissem que nunca sonhava nem tinha pesadelos pois sua vida era só a realidade e não existia fantasia boa ou má. E quando sua mãe ouviu que ele não dormia sorriu um sorriso complacente e disse também que houve uma época que ela não dormia. E que talvez fosse genético e que ele não tinha culpa de ter herdado aquilo e era uma herança maldita. Então ela lhe trouxe um comprimido e ele tomou e então achou que estava tudo resolvido que sua mãe sabia o entendia e ele dormiria. Então continuou deitado imóvel e fechou os olhos e não dormiu. E quando amanheceu ficou desesperado e contou à mãe. E ela lhe deu dois comprimidos disse que tomasse os dois que seria mais forte e então resolveria. E então ele tomou e perguntou à mãe porque ela não dormia. E ela disse que detestava a vida e se casou obrigada com seu pai e nunca o amou e gostava de mulheres e só o teve para se disfarçar das vizinhas que a chamavam de lésbica. E ele viu que sua mãe não gostava dele e não ligou porque tomou dois comprimidos e mesmo assim não dormia. E viu que era igual a sua mãe e não gostava dela, nem da empregada, nem dos cachorros, nem do pai, nem da professora, nem do amigo. Porque ele não dormia e ninguém via. Então saiu dali e foi até o hospício e tentou entrar mas não conseguiu porque o moço da porta disse que ele era igual e ali era o lugar dos diferentes. E desistiu de tudo e de todos e do mundo e da morte e da vida e da empregada e seus seios e os cachorros e as lambidas e sua mãe e a comida e seu pai e os remédios e o amigo e a amiga e a professora e o beijo e o travesseiro e pensou em voltar pra casa mas não voltou e ficou na rua e deitou no chão e as pessoas passavam por cima dele e não o viam e pisavam em sua cabeça e não o viam e escorria sangue e escorria lixo e escorria ossos e escorria carne e escorria sêmen e escorria o mundo e escorria morte e escorria vida e ele não dormiu. E morreu acordado, que é a pior forma de estar morto.

Raphael Vidigal

Pintura: "Paisagem com azeitonas e eucalipto", de Anna Boch.

2 comentários:

Raphael Vidigal disse...

me explica esse texto do menino que não dormia... fiquei intrigado...

Marcelo Augusto

Alessandra Rezende disse...

texto maravilhoso!!!!
história envolvente, curiosa, arrastante!
gostei mtoo!!!
é engraçado como vivemos sobos olhos dos outros... e quando esses não nos compreendem, somos tarjados de loucos ou desinteressantes.
Às vezes temos algo para mostrar, para sermos ouvidos, mas ninguém dá a menor importância... aquilo não interessa para o mundo. Somos levados a esconder nosso íntimo, a prender nosso grito... a andar de calças e blusas e maquilagem, e sermos bonitos, todos iguais... as diferenças nao interessam.

Adorei o modo como abordou a questão dos moradores de rua através do menino que era "normal", bonito, tinha a família ideal, classe média alta e amigos...
pode ser qualquer um ali... basta não ser visível... basta nao beneficiar o mercado, basta não ser "digno" socialmente....
complicado isso...

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