segunda-feira, 5 de dezembro de 2011


“para um poeta, a fantasia é a realidade e a realidade nada significa.” Oscar Wilde


Peça teatral: Gângsters. Discussão: o que arranjar com pérola da noite. Quantos: quatro. Características pessoais: todos armados. Fisionomia: um gordo, dois fortes, outro alto. Fumam: charutos. Bebem: em copos quadriculados. Substância: desconhecida. Relatório para futuras providências.

Pérola da noite está amarrada no sótão. Não no porão. O cheiro ralo atrapalharia seu penteado. São loiros seus finos fios de cabelos dourados. Entretida com um espelho, passa batom nos carnudos lábios (cor: vermelha) e se diverte ouvindo a discussão no andar de baixo. Possuidora de seios fartos e um traquejo infalível para diferenciar whisky de rum, é, no entanto, solitária.

Concha. O único sinal que desperta pérola da noite. Desde moçoila procura. Resolveu, então, por iniciativa própria entregar-se aos gângsters. Claro, que, para isso, teve antes que assassinar a madre Ostra, uma italiana reacionária, que jamais entenderia os reais motivos de uma suspeita de fraude.

Pérola não consegue conviver com a luz solar. Por motivos claros. É certo que as profundezas do oceano lhe dariam abrigo soturno, azul-marinho. Mas isso não é o suficiente para uma pérola moderna e auto-suficiente como ela. Vê-se a necessidade de encontrar uma escuridão sim, dentro duma concha de alto quilate.

Sapateiro, o gângster número 1, o gordo, desequilibrado como um homem num salto-alto, sugeriu a alternativa que deixaria menos rastros: queimá-la. No entanto, entre cartas de baralho, logo foi descartada. O odor exalado seria insuportável. Voltaram então ao carteado, e depois de litros de rum e inspiração, surgiu outra sugestão.

Costureiro, o gângster número 2, o alto, possuidor de bigode de linhas finas de gato como o de Salvador Dalí, supôs que poderiam aproveitá-la como tema de um anúncio publicitário. Pena que não sairia bem na foto, pois era difícil arrancar-lhe um sorriso, os lábios carnudos sempre cerrados.

Ao que imediatamente apareceu outra voz! Sultão, o gângster número 4, outro gordo, chefe da quadrilha, bafejou: amarrem-na de cabeça para baixo e façamos um suculento prato, aproveitando as abóboras e cebolinhas!

Prontamente foi rejeitada a idéia. Tinham asco de canibalismo. Os outros. O chefe decepcionou-se, desistira. Ia quase ordenando que desamarrem-se pérola e a jogassem de volta ao mar.

O gângster número 3, Vestibulando, o forte, simplesmente não tinha idéia nenhuma. Só arqueava a cabeça para dizer se concordava ou não com as propostas alheias. Manteve-se calado no silêncio. No barulho, já não era de acudir tanto.

Então, decidiram pela primeira vez ouvir o desejo de pérola da noite, ela disse, com os lábios carnudos de batom vermelho: uma concha.

Não foi preciso mais nada, escalpelaram pérola. Venderam suas partes mais requisitadas em bisturis de joalherias, naquela época era grande a procura por cirurgias plásticas: seios, lábios, bunda, maquiagem, pernas, coxas, olhos e rímel, todos foram usados em peças de menor brilho e destaque.

Só a tua lágrima, lançada como rede em peixes, regressou ao mar. Onde ela espera afoita, furtiva, a que nunca veio: a concha.

Raphael Vidigal

Pintura: "Toilette", de Toulouse-Lautrec.

4 comentários:

Raphael Vidigal disse...

Raphael!!! Fantástico!!!
Seus contos são realmente
impactantes, uma delícia
de se ler.
Oscar Wilde deve ter se
sentido feliz por ser citado
em obra extravagante e bela.
Parabéns, adoro seu estilo!!!
Beijos,
M.Inês

Raphael Vidigal disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alessandra Rezende disse...

Q dó da pérolaa!!!! =/

Mas lindoooo o textoo!!!!

Adorei o Vestibulando super passivo!!!!!!

hehehehe

Beijoss

Raphael Vidigal disse...

Achei muito bom, inusitado e com uma forma de narrar diferente, mais próxima à linguagem internética (se é que essa palavra existe). Quero ler os outros e, assim que o fizer, dou um retorno. É um prazer para mim.

Tarcísio

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